segunda-feira, 22 de julho de 2013
Em busca do rebanho perdido
Excelente artigo no Valor( jornal editado por uma evangelica) sobre o estado atual do catolicismo no Brasil.
Ter o Brasil como destino da primeira grande viagem internacional do papa Francisco parece tão adequado para a Igreja de Roma que até os descrentes poderiam suspeitar de uma pequena ajuda dos céus. O cardeal argentino Jorge Bergoglio deixou Buenos Aires para se tornar o primeiro pontífice do Hemisfério Sul, para onde tem se deslocado o eixo do cristianismo mundial nos últimos anos, e o único até agora a ter origem na América Latina, terra de boa parte do rebanho católico atualmente. Francisco, 266º papa da história, virá ao maior país católico do mundo na semana que vem e vai falar a um público que desperta a atenção de qualquer credo religioso: os jovens.
Sob esse mar de conveniências, no entanto, se acumulam indícios de que está em curso uma transformação radical no cenário religioso brasileiro, que transborda os limites da fé e tem implicações em todas as outras áreas da vida, da política à economia. Parte dessas mudanças ainda é difícil de distinguir e afeta diversas confissões religiosas, mas parece inegável que o traço mais emblemático desse processo seja a diminuição da influência católica.
Em quase um século, o número de católicos no Brasil caiu apenas 8%. Em 1872, ainda na época do império, 100% da população brasileira se declarava fiel aos princípios de Roma. Em 1970, sob o regime militar, essa porcentagem era de 91,8%. Foi quando a tendência começou a se acelerar. E muito. De 1980 a 2010, os católicos passaram de 89% da população para 65%, uma queda de 24 pontos percentuais em apenas 30 anos. Enquanto isso, os evangélicos tiveram um aumento de 15,5 pontos percentuais, passando de 6,6% para 22,2% dos brasileiros. O impulso veio principalmente das igrejas pentecostais - grupos evangélicos mais recentes, com ênfase em habilidades especiais, como a capacidade de curar doentes. De 1980 a 2000, o número de pentecostais dobrou a cada década, de 3,9 milhões para 17,6 milhões de fiéis. Em 2010, eles já eram 25,4 milhões. Ou seja, o papa também vai pregar naquele que provavelmente também é o maior país pentecostal do planeta.
"O Brasil entrou definitivamente na era do pluralismo religioso. Passou de uma posição de hegemonia católica para uma de maioria católica", diz o professor Cesar Romero Jacob, diretor do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Mas a perda de espaço dos católicos para os pentecostais - e para os que se declaram sem religião, outro grupo em crescimento - não ocorre da mesma maneira em todo o país, ressalva Jacob. "Há lugares onde a Igreja Católica perde muito e outros onde perde pouco ou quase nada."
Parece misterioso, mas a redução mais acentuada ocorre em dois cenários muito distintos entre si: na chamada fronteira agrícola, formada por Estados como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além da região amazônica, e nas periferias das maiores metrópoles, como São Paulo e Rio. "O que há de comum entre esses dois mundos?", pergunta o professor. "O migrante", responde.
Migrações não são um fenômeno novo no país e, necessariamente, não implicam uma mudança da matriz religiosa, mas alterações historicamente recentes no processo migratório acabaram induzindo uma transformação no quadro confessional do país, diz Jacob. Da Primeira Guerra até 1974, o primeiro choque do petróleo, muita gente mudou do interior para as capitais sem trocar de religião. O que aconteceu a partir daí, afirma o estudioso, é que sucessivas crises econômicas empobreceram tanto a população que a motivação dos migrantes passou do sonho de buscar uma vida melhor para a sobrevivência pura e simples.
Sem emprego e com o Estado quebrado, essas pessoas se viram reunidas em áreas que tinham pouco a ver com sua região original, sem o apoio da família e de amigos e com quase nenhuma infraestrutura para dar conta das necessidades mais básicas. Como a Igreja Católica também não estava presente nessas áreas, pelo menos de maneira maciça, esses grupos passaram a prestar mais atenção em uma pregação que muitos nunca tinham ouvido antes - a dos pentecostais. Estavam abertas as portas para o fluxo de conversões que se veria a seguir.
A Igreja Católica bem que tentou se aproximar dessa parcela da população mais pobre, em um esforço que abriu um dos capítulos mais polêmicos da história recente do catolicismo na América Latina. Foram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que se disseminaram entre os anos 60 e 80. Muito influenciadas por adeptos da Teologia da Libertação, que tentava aproximar o evangelho da teoria marxista, as CEBs não conseguiram a adesão massiva dos mais pobres e acabaram se tornando alvo das animosidades entre as diferentes facções da hierarquia romana, opondo bispos e religiosos mais conservadores aos progressistas.
"Imagine que você é uma mulher pobre, nos anos 70 ou 80, com um marido que está desempregado e fica violento quando bebe", diz o professor Rodrigo Franklin de Sousa, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. "Você vai a uma CEB, onde encontra um padre altamente intelectualizado, falando sobre a estrutura do capitalismo. Em seguida, vai a uma igreja pentecostal, na qual o pastor diz que vai orar para seu marido parar de beber cachaça e proporcionar a você uma vida melhor. Em que lugar você ficaria?"
Com o tempo, esse descompasso acabou ficando tão evidente que os estudiosos da religião criaram uma frase para resumir aquele período. "A Teologia da Libertação fez uma opção preferencial pelos pobres, mas os pobres fizeram uma opção pelo pentecostalismo", repete Sousa.
Na prática, a polarização na Igreja Católica deixou, de um lado, uma instituição formal e dogmática, defendida pelos mais conservadores e distante da população; de outro, as CEBS, que passaram a ser bombardeadas internamente, principalmente a partir do pontificado de João Paulo II, e também não se mostraram hábeis em atrair fiéis. No vácuo, os pentecostais iniciaram sua escalada, que se revelaria muito mais bem-sucedida do que parecia a princípio.
O avanço pentecostal não é a única preocupação da Igreja Católica. O próprio perfil de quem permanece fiel à instituição mudou muito. "Se no passado havia uma pressão para ser religioso, hoje existe uma força contrária, para não ser. Curiosamente, o que se vê é que muitos católicos, principalmente entre os jovens, têm sido mais engajados. São religiosos por opção", afirma Sousa, do Mackenzie. O enunciado da equação é que, se há menos católicos no total, existe entre eles um número maior de praticantes.
Isso, porém, não quer dizer obediência cega aos preceitos da Igreja Romana. A maioria dos católicos ignora solenemente alguns princípios preconizados por padres, bispos e cardeais. É o caso da proibição do sexo antes do casamento e do uso de métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional. O aumento do número de adolescentes grávidas e solteiras - algumas no segundo ou terceiro filhos - mostra isso. O divórcio, um ponto nunca digerido totalmente por Roma, também se tornou comum, apesar de o matrimônio ser um sacramento para os católicos e, portanto, considerado indissolúvel.
"O católico brasileiro ama ser católico, mas quer construir identidade própria, independentemente do dogma. Ele se identifica com a religiosidade, mas nos seus termos, o que também vale para outras religiões", diz o professor Sousa.
Essa liberdade se soma a fenômenos culturais com raízes mais antigas, que fomentaram uma fé sincrética, que toma emprestados aspectos de diferentes religiões para criar uma expressão individual muito particular de religiosidade. No Brasil, todo mundo conhece alguém que se define como católico, mas acredita em reencarnação, joga velas para Iemanjá no réveillon e mantém uma estátua de Buda na estante para dar sorte - elementos que não têm nada a ver com a fé católica.
A pergunta é como esse católico pouco tradicional, a despeito de um perfil eventualmente mais interessado na vida eclesiástica, vai responder a outras questões de ordem prática, sobre as quais a Igreja Católica tem posições claras, nem sempre em sintonia com o desejo da maioria. O casamento gay está longe de um consenso, mas já foi legalizado em países tradicionalmente católicos e vem sendo discutido em muitos outros lugares. O aborto, outro tema explosivo, também suscita discussões recorrentes, assim como as pesquisa com células-tronco. A influência da Igreja Católica será proporcionalmente maior à medida que conseguir convencer seus fiéis de que seus argumentos estão corretos. A alternativa é pregar ao vento, sem ninguém para ouvir.
É a esse jovem, que tomou parte ou no mínimo acompanhou os protestos recentes no país, que o papa Francisco vai falar no Rio, durante a Jornada Mundial da Juventude, instituída por João Paulo II em 1984. "Será a abertura de seu pontificado em termos estratégicos", diz o professor Fernando Altemeyer, do Departamento de Teologia da PUC-SP. "Questões relativas à moral sexual, como o uso da camisinha e o casamento gay, provavelmente não serão tratados na viagem. Os temas ficarão concentrados em pontos estratégicos da vida do jovem", afirma o teólogo.
A expectativa de Altemeyer é que cerca de 320 mil jovens participem das atividades da semana, um número que pode chegar a 500 mil, já que ainda há vagas a preencher. "A última missa pode reunir os 2 milhões de pessoas esperadas, mas não dá para dizer que todos eles terão participado da Jornada. [Na missa] vai estar lotado de protestante, pentecostal, gente da umbanda e do candomblé... Todo mundo quer ver o papa", diz o professor da PUC-SP. "Vai ser uma apoteose."
A figura de Francisco, a começar do nome escolhido - uma referência ao santo pobre e amigo dos animais -, ajuda a capturar a atenção do público. Nas redes de TV e no noticiário em geral voltou à moda um bordão retirado de um rock nacional dos anos 80: "O papa é pop". O caráter midiático do chefe da Igreja Católica não pode ser subestimado. Principalmente porque ele sucede à imagem severa do envelhecido papa Bento XVI, anteriormente cardeal Ratzinger e hoje papa emérito. "Bento XVI era um intelectual, era cérebro. Francisco é estômago, é visceral", observa Altemeyer.
Com a visita ao Brasil, será a hora de saber quanto a imagem risonha e amigável de Francisco será capaz de contribuir para a recuperação de parte do rebanho perdido no Brasil. Sob qualquer aspecto, não é uma tarefa fácil. Muitos estudiosos da religião observam uma forte alteração de rota, na direção do conservadorismo, a partir de João Paulo II, com desdobramentos ainda mais profundos sob a direção de Bento XVI. A avaliação geral é que a Igreja Católica tornou-se "teológica" demais, muito preocupada com a preservação dos dogmas, mas distante das questões do dia a dia que afetam a vida dos seus fiéis.
O clamor por uma abordagem cotidiana e temperada com uma flexibilidade maior parece legítimo, mas acertar a dose não é coisa simples, como mostram os exemplos de outras igrejas cristãs.
Nos Estados Unidos, as grandes denominações protestantes que dominaram a cena desde o Mayflower até pelo menos a década de 50 - luteranos, presbiterianos, episcopais e metodistas, entre outros grupos - deram uma guinada em direção ao liberalismo, com consequências desapontadoras sob muitos aspectos. Reconhecidas por um chapéu comum, o das "mainline protestants", essas igrejas partiram para uma ação social mais engajada e fizeram, internamente, mudanças que pareciam identificadas com o senso comum, incluindo a ordenação de mulheres. Mais recentemente, algumas passaram a aceitar casais gays não apenas entre os membros como em seu corpo de ministros. O resultado é que muitos fiéis deixaram seus bancos, trocando-os por igrejas evangélicas que fazem uma interpretação mais literal das Escrituras. É esse segmento religioso o que mais cresce nos EUA. A diferença é que muitas igrejas evangélicas americanas mantêm um perfil tradicional, bem diferente do ramo pentecostal de rápido crescimento no Brasil.
"O problema das 'mainline' é que, apesar de ter se preocupado com questões contemporâneas, elas esvaziaram o sentido espiritual. No domingo, as pessoas passaram a ouvir do púlpito que os milagres relatados na 'Bíblia' têm explicações naturais, eliminando o místico e o sobrenatural", diz Sousa. A decisão, mais propensa ao mundo acadêmico do que à busca dos fiéis pela transcendência, foi dos teólogos e não das pessoas comuns, o que ocasionou o desencontro, afirma o professor do Mackenzie.
No Brasil, quem vai participar da Jornada da Juventude, no Rio, faria bem se observasse com mais cuidado os lugares onde ficarão concentradas as maiores manifestações: Copacabana, na zona sul da cidade, e Guaratiba, na zona oeste, duas áreas que, segundo o professor Jacob, exemplificam as diferenças religiosas que ganharam corpo no país nos últimos tempos.
O pentecostalismo cresce principalmente na miséria e na segregação, afirma o pesquisador, com base em trabalhos iniciados há dez anos. Aparentemente, segundo a tese, todas favelas seriam um terreno propício à pregação pentecostal. Mas os trabalhos de Jacob e sua equipe - o mais recente deles intitulado "Religião e Território no Brasil" e lançado na forma de um e-book gratuito - mostram variações: enquanto as favelas da zona sul do Rio, como a Rocinha, permanecem católicas, as da parte pobre da zona oeste, incluindo as de Guaratiba, mostram grande número de pentecostais.
A diferença é que como a Rocinha fica próxima a Copacabana seus moradores podem se aproveitar, mesmo que parcialmente, da infraestrutura existente no bairro, um dos mais tradicionais da cidade. Já em Guaratiba, de ocupação mais recente, o acesso à rede de serviços públicos é muito menor. A sutileza, conclui o professor, é que só um dos elementos da combinação mortal pobreza-desagregação pode não ser suficiente para estimular uma debandada religiosa em direção a uma fé diferente. Isso ocorreria mais facilmente quando as duas condições estão juntas.
Isso adquire um caráter importante porque as gestões dos três últimos presidentes da República - Fernando Henrique, Lula e Dilma - contribuíram para a estabilidade econômica e o aumento da renda média dos brasileiros, o que elimina ou pelo menos reduz fortemente o impacto das condições econômicas no comportamento religioso da população. "Isso não quer dizer que o pentecostalismo vá deixar de crescer ou o catolicismo parar de cair, mas o crescimento das igrejas vai depender muito mais da organização e da ação pastoral de cada grupo religioso", diz Jacob.
As relações econômicas não são as únicas a interferir no perfil religioso do país. Há também um reflexo político. As igrejas reformadas históricas, criadas sob os princípios da Reforma Protestante do século XVI na Europa, sempre evitaram a tentação de misturar as clássicas esferas da igreja e do Estado, o que significa não dizer a seus membros em quem votar ou apoiar oficialmente um ou outro partido político. A natureza da relação entre a Igreja Católica e a política no Brasil é complexa, considerando que até o fim do império essa era a religião oficial do país. A maioria dos políticos é católica, um reflexo da composição religiosa da população, mas dificilmente eles agem como um bloco. O dado novo é que muitas igrejas pentecostais não têm o refinamento dos grupos tradicionais e partem para uma luta pelo poder, sem dogmas a defender, diz Sousa, do Mackenzie.
Complexo sob vários aspectos, esse cenário torna ainda mais relevante saber o que o papa vai dizer em sua peregrinação ao Brasil, já que se espera que esse seja o tom de seu pontificado. Recentemente, o discurso de Francisco na ilha de Lampedusa, no sul da Itália, perto da costa africana, causou furor por causa da veemência em condenar o que classificou de globalização da indiferença, em uma crítica ao fechamento da Europa a populações mais pobres.
Outras duas medidas deram indicações dos caminhos que o papa pode seguir: uma nova encíclica, que já vinha sendo desenhada por seu antecessor, e mudanças no código penal do Vaticano, que não propõem nenhum movimento radical, mas de alguma maneira mostram uma disposição da nova administração em ser mais rigorosa quanto a um dos problemas mais sensíveis da Igreja de Roma: a série de casos de pedofilia envolvendo religiosos.
Em novembro, diz o professor Altemeyer, da PUC-SP, é esperada uma grande reforma administrativa na Igreja Católica. Como bispo de Roma, caberá ao papa definir cargos importantes, como o de secretário de Estado do Vaticano, e anunciar um aguardado enxugamento da máquina. Mas a reformulação terá a gestão como alvo.
Questões mais nervosas, como o celibato e a ordenação de mulheres, podem até entrar em discussão no futuro, afirmam especialistas, mas a maioria deles não prevê nenhuma reforma radical nessas áreas. A previsão é que o papa poderá até imprimir uma tônica progressista às suas críticas à política econômica global ou às desigualdades sociais, como já provou em Lampedusa, mas será mais conservador no que tiver de fazer dentro de casa.
No Rio, afirma Altemeyer, não se deve esperar nenhuma crítica contundente aos pentecostais. "Eles também são cristãos. O problema, hoje, é o número de jovens que estão se tornando agnósticos", afirma.
Quando ao celibato, o que pode levar a uma discussão mais intensa não é questão sexual ou os direitos do padre de constituir família, diz Altemeyer. "O problema é que faltam padres no Brasil. Hoje são 22 mil sacerdotes em todo o país para cerca de 50 mil lugares de culto católico, incluindo igrejas, capelas, hospitais etc." A maioria dos sacerdotes está no Centro-Sul, o que deixa desassistidas áreas como o Nordeste e a Amazônia.
O celibato não é um dogma da Igreja Católica, o que significa que o processo formal para alterá-lo não é tão complexo, mas uma carga cultural de séculos não é fácil de abandonar e há uma série de questões decorrentes para organizar uma estrutura em que padres casados, acompanhados de família, passariam a assumir paróquias. Nessa, como em outras questões, caberá a Francisco equilibrar dois lados: as mudanças e a tradição.
João Luiz Rosa
Fonte: Valor