terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Entrevista com o Persio Arida.


Nada como ler uma entrevista com alguem que realmente conhece e gosta de economia. É um ótimo antidoto contra a superficialidade da heterodoxia




O senhor acredita que vivemos uma guerra cambial?

PERSIO ARIDA: É preciso colocar o fenômeno em perspectiva. É natural, para países que se desenvolvem tardiamente e de fato entram numa rota de crescimento sustentável, que suas moedas se valorizem. A apreciação também é resultante da institucionalização. A noção de que o investimento em economias emergentes tem riscos institucionais, como riscos de expropriação e mudanças abruptas no quadro regulatório, está se dissipando. Além disso, o Brasil não tem comércio apenas com os EUA. Se olharmos o real com relação a uma cesta de moedas, a apreciação é menor do que parece, porque o dólar se desvalorizou contra as demais moedas.

Ou seja: viveríamos uma apreciação, mesmo sem a desvalorização forçada da China ou as emissões de moeda nos EUA?

ARIDA: A taxa de câmbio é sempre um valor relativo. Obviamente, a política monetária expansionista dos Estados Unidos, ao enfraquecer o dólar, contribuiu para a apreciação do real. Também é evidente que a política chinesa tem efeito. Meu ponto é que a apreciação, ao menos em boa medida, é consequência natural do nosso progresso. A questão seria melhor colocada assim: será que a apreciação está rápida demais? O fato de termos um déficit de conta corrente não nos autoriza a dizer que a apreciação está muito rápida. Ao contrário do que normalmente se pensa, é razoável esperar que o Brasil apresente um déficit em conta corrente nas condições atuais. De um lado, a poupança do governo é praticamente inexistente; de outro, a poupança privada não é suficiente para sustentar o volume de investimento necessário para crescer 5% ou 5,5% ao ano de forma sustentável. Seria ótimo se tivéssemos mais poupança interna, mas o fato é que, como os EUA, a nossa poupança é historicamente mais baixa do que a dos países asiáticos. Sem poupança externa - ou seja, sem déficit de conta corrente - não conseguiríamos atingir nossa taxa potencial de crescimento.

Mas há uma enorme preocupação de gente do próprio governo com o déficit.

ARIDA: Eu não teria essa preocupação nos níveis atuais do déficit. Primeiro, porque se trata de um déficit sustentável. Segundo, porque é um déficit associado a investimento e não a consumo. Terceiro, porque, no curto prazo, não vejo aumento significativo nem na poupança pública, nem na poupança privada. Daí a nossa dependência em relação à poupança externa.

E a desindustrialização?

ARIDA: De novo, essa questão ganha uma dimensão temporal. É natural que, à medida que o país se desenvolva, o salário real suba, o país fique mais educado e você perca a competitividade em indústrias que dependam de mão de obra barata. Esta perda de competitividade não é ruim. É claro que é um fenômeno traumático porque a mobilidade de mão de obra não é instantânea. Você não emprega aqui o que desempregou acolá num mesmo momento, mas é de se esperar que, à medida que o país se desenvolva, ele perca a competitividade em algumas indústrias e ganhe em outras.

Mas e se não há tempo suficiente para que as indústrias criem empregos no mesmo ritmo em que perdem?

ARIDA: É um fenômeno de apreciação prematura do câmbio e não é um problema simples. O Brasil hoje tem uma posição única no planeta: tem crescimento alto para padrões internacionais. Tem taxas de juros, portanto, remunerações atraentes para o mercado financeiro. É uma democracia de massas, um país pacífico, com respeito ao direito de propriedade, com escala e aberto ao capital estrangeiro. Essa conjugação de fatores não existe em lugar nenhum do mundo. Do ponto de vista financeiro, como o Brasil tem taxas de juros muito altas, o investidor entra assim mesmo e o que se vê é que as várias medidas adotadas pelo governo para segurar a valorização têm eficácia por apenas um período de tempo.

E como resolver o problema?

ARIDA: O governo está sempre inovando, mas o aspecto conceitual para o qual eu queria chamar a atenção é que o segredo para evitar a apreciação muito rápida é não diminuir a volatilidade do câmbio. Quando você comprime a volatilidade do câmbio, todo mundo entra, porque as taxas de juros são atraentes.

Quem vai comprar dólar para viajar ou exportar vai odiar ouvir isso.


ARIDA: Vou dar como exemplo as intervenções do Banco Central do Japão em 2004, quando o iene chegou a 103 por dólar. O BCJ fez um diagnóstico de que o principal motor da apreciação era claramente um processo especulativo. Eles compraram dólares sem nenhuma referência, sem qualquer anúncio e erraticamente, ou seja, volumes maciços e aleatoriamente. Isso acabou provocando uma enorme volatilidade no mercado de câmbio e perdas enormes para quem estava apostando. É um extremo, um exemplo a ser refletido.


A questão dos juros está atrelada necessariamente à questão cambial ou reflete mais custo Brasil, burocracia, spread bancário etc.?

ARIDA: O juro necessário para sustentar a inflação constante no Brasil, na ausência de choques, é muito mais alto que em outros lugares. Podemos até argumentar que, ao longo do tempo ele está caindo, mas é um processo surpreendentemente lento de convergência a padrões internacionais. O mercado financeiro brasileiro é muito sofisticado, mas o horizonte de tempo das aplicações e empréstimos é curto. Por inércia, acostumou-se a pensar que no Brasil só vale a pena ter ativos financeiros se a taxa de juros real for muito alta. Se não, é melhor consumir. Em épocas inflacionárias, isso tinha razão de ser porque os ativos financeiros tinham riscos. Hoje, isso não é verdade. Fenômenos de memória coletiva sobrevivem por períodos muito mais longo de tempo do que a racionalidade econômica indicaria.

E as reformas institucionais?

ARIDA: Elas ficaram meio fora de pauta, mas continuam tão importantes quanto antes: a reforma fiscal, previdenciária, trabalhista. É claro que, quando o país cresce mais rápido, as tensões diminuem e as necessidades de fazer reformas diminuem também.

Até que ponto a inflação é perigosa?

ARIDA: O Brasil entrou numa rota de pleno emprego com pressão inflacionária (taxa de inflação no teto da banda no fim do ano). A razão é que as políticas de saída, ou seja, de reversão do megaestímulo dado após o colapso do Lehman Brothers, não foram implementadas em tempo. Isso vale para a política fiscal, a política monetária e mesmo a política de concessão de crédito da Caixa e do BB. O que aparentemente vivemos agora é a correção de rota para manter a inflação sob controle. É difícil achar o ponto exato da reversão de estímulos. Os responsáveis pela política econômica no mundo inteiro (e aqui também) preferiam errar demorando para remover os estímulos do que errar retirando-os prematuramente. O diagnóstico implícito era que a inflação decorrente da excessiva demora seria um problema mais simples de lidar do que a recaída recessiva causada por uma retirada prematura.

Quais são suas preocupações com respeito à economia mundial?

ARIDA: Das ameaças que se consegue enxergar, a mais evidente é a europeia, onde você tem uma superposição entre dívida soberana e dívida bancária enorme. Há um problema de excessivo endividamento em um número de países da periferia com trajetórias que, com as taxas de juros atuais, são claramente inviáveis. Então é um jogo onde, só faz sentido não reestruturar a dívida se você imaginar que haverá uma normalização das taxas de financiamento em breve. É uma situação delicada, com consequências imprevisíveis.


Fonte: O Globo