quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Martin Wolf e a Irlanda
Ótimo artigo do Martin Wolf sobre a Irlanda.
"Se eu fosse o senhor, não começaria por aqui". Esse desfecho da bem conhecida piada irlandesa nunca poderia ser mais pertinente. O Tigre Celta sofreu um colapso sob uma montanha de endividamento podre. Isso levanta perguntas sobre a quem cabe a responsabilidade pelos excessos financeiros. Esse é um tema para a eleição de hoje na Irlanda. E deveria ser para toda a Europa, amanhã.
Onde está a economia irlandesa agora? De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), nos últimos três anos, a queda acumulada do Produto Interno Bruto (PIB) real foi de 11%, do Produto Nacional Bruto (PNB) foi 16% e da demanda doméstica real foi de 22%. A taxa de desemprego saltou de 4,6% em 2007 para 13,3% em 2010. A relação entre a dívida pública e o PIB disparou de apenas 25% em 2007 para 95% em 2010.
O que causou essa calamidade? Como observa Philip Lane, do Trinity College: "Houve um verdadeiro milagre econômico irlandês, com crescimento muito rápido da produção, do emprego e da produtividade durante o período 1994-2000". Sem a entrada na zona euro, isso poderia ter se esvaziado. Mas a queda nos juros aumentou o risco de que iria surgir uma bolha de crédito no setor imobiliário. E foi o que ocorreu.
O professor Lane observa: "O sabor desse boom foi muito diferente daquele dos anos do Tigre Celta". Em particular, ele foi dominado por um surto na atividade de construção civil. "Além disso, essa "expansão nos investimentos imobiliários foi alimentada por rápida expansão do crédito, não apenas para as famílias, mas também para um pequeno grupo de construtoras".
A proporção de crédito privado em relação ao PIB saltou de cerca de 100% em 2000 para 230% em 2008. Instituições financeiras estrangeiras desempenharam um papel importantíssimo nesse boom de financiamento: o passivo externo líquido dos bancos irlandeses saltou de 20% do PIB em 2003 para mais de 70% no início de 2008.
A crise mundial provocou uma interrupção imediata da entrada de capitais. Em pânico, em setembro de 2008 o governo irlandês reagiu dando garantias sobre o endividamento dos bancos. À medida que cresciam os custos fiscais, puxados pelo desaquecimento e pela necessidade de socorrer os bancos, o que começara como uma crise financeira terminou como uma crise da dívida pública. Não é a primeira vez que um setor financeiro fora de controle arruina o setor estatal. Não será o último.
Como a crise foi tratada? Um ponto crucial é que não se trata de uma crise, mas de três: um colapso econômico, uma implosão financeira e um desastre fiscal. Em primeiro lugar, em vista da queda na demanda e da necessidade de contração fiscal, as perspectivas de recuperação dependem fortemente das exportações. Na segunda, os custos diretos do sistema de recapitalização deverão ficar em torno de 36% do PIB, segundo a corretora Goodbody. Para efeito de comparação, o custo da crise financeira asiática na Coreia do Sul foi de 31% do PIB, ao passo que o custo da crise atual para a Islândia poderá ser de apenas 13% do PIB. Nesse caso, a dívida pública poderia ser de 123% do PIB em 2014. Pouco mais de um terço desse aumento na relação da dívida pública, então, seria um resultado direto da recapitalização dos bancos.
Essa crise está além da capacidade da Irlanda de prosseguir sem colapso financeiro e inadimplência soberana. Os bancos tornaram-se dependentes do Banco Central Europeu, ao passo que o Estado irlandês perdeu acesso ao mercado privado, tendo os spreads acima dos títulos alemães atingido 600 pontos base. Antes de agosto de 2007, esse diferencial era negativo. Os mercados não tinham noção do que estava por vir.
Sem financiamento do BCE, os bancos teriam entrado em colapso. Sem financiamento externo, o governo teria ficado inadimplente. O pacote de socorro chegou a € 85 bilhões de (US$ 116 bilhões), ou 54% do PIB de 2010. O FMI ressaltou que os elevados riscos refletiam incerteza quanto aos prejuízos dos banco, a difícil perspectiva do endividamento, a despeito de um ajuste fiscal inédito, obscuras perspectivas de crescimento, contínuo foco do mercado nos países europeus periféricos e de eleição geral iminente. Há consenso nos mercados: os spreads sobre os títulos do Tesouro alemão praticamente não caíram.
Assim, o que poderia um novo governo procurar fazer? Seus graus de liberdade estão, infelizmente, limitados. Mesmo excluindo a recapitalização dos bancos, o déficit fiscal primário (antes do pagamento de juros) ficou perto de 10% do PIB no ano passado. Nos termos do programa do FMI, esse número deve ser convertido num superávit de 1,5% do PIB em 2015. Dada a falta de acesso aos mercados privados, o déficit teria que ser eliminado ainda mais rapidamente sem a ajuda oficial. Mais uma vez, o excesso de endividamento seria enorme, sob quaisquer premissas plausíveis. A Irlanda está condenada a uma austeridade fiscal por décadas, tendo em vista suas limitadas perspectivas de crescimento, pelo menos em comparação com seus anos de Tigre.
Excluído o apocalipse da inadimplência soberana, há duas escapatórias parciais. O mais trivial seria uma redução na taxa de juros sobre a tomada de financiamentos pela Irlanda: uma redução de 1% no juro pouparia ao Estado 0,4% do PIB por ano. Isso constituiria pelo menos uma pequena ajuda. Uma possibilidade mais proveitosa seria uma baixa contábil de dívida sênior e subordinada existente, que hoje soma 21,4 bilhões de euros (14% do PIB).
O BCE e os outros membros da União Europeia vetaram a ideia, temerosos de contágio. De fato, o pacote de socorro foi criado em parte para evitar isso. Ainda assim, a ideia de que os contribuintes deveriam socorrer os credores sêniores de bancos insolventes a tais riscos para a solvência de seu Estado é tanto injusto como irracional. Se o restante da UE estiver determinada a proteger os credores sênior, deveria compartilhar custo de fazê-lo. Por que deveriam os contribuintes do país tomador de empréstimos pagar tudo? O novo governo irlandês deveria colocar esse argumento com firmeza.
Por fim, quais são as lições dessa calamidade? Uma é antiga: um setor financeiro fora de controle cria uma euforia autorrealizável e, depois, pânico, como advertiu Hyman Minsky. No entanto, esse episódio em particular tem pelo menos duas lições específicas para a região do euro. Primeira, a entrada na região do euro também pode significar um enorme choque econômico. Segunda, a visão, popular na Alemanha, de que uma política fiscal rigorosa solucionaria todos os problemas está claramente equivocada. Antes da crise, a relação entre a dívida pública irlandesa e o PIB era 40 pontos percentuais menor do que na Alemanha. É verdade que a política fiscal irlandesa poderia ter sido mais apertada. Mas isso teria feito quase nenhuma diferença no resultado, a menos que pudesse ter sido capaz de gerar um grande superávit. De fato, com tal política, as taxas de juros de longo prazo poderiam ter sido menores e a disparada dos preços dos ativos ainda maior.
A calamidade fiscal irlandesa não é a causa da crise, mas a consequência. O grande problema foi o comportamento dos agentes privados que tomavam e concediam empréstimos. É isso que dever ser enfrentado. Comecem agora.
Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.
Fonte: Valor