Finalmente saiu a Caritas in Veritate, a encíclica do Bento XVI dedicada a questôes econômicas e sociais. Quem espera uma critica a economia de mercado, globalização, finanças internacionais, etc, na linha da turma de sempre, certamente, vai ficar desapontado. Leitura obrigatória, não somente aos católicos, mas, a todos aqueles que apreciam a produção intelectual de alta qualidade.
36. A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.
Desde sempre a Igreja defende que não se há-de considerar o agir económico como anti-social. De per si o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente humanas. É verdade que o mercado pode ser orientado de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.
A doutrina social da Igreja considera possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da actividade económica e não apenas fora dela ou « depois » dela. A área económica não é nem eticamente neutra nem de natureza desumana e anti-social. Pertence à actividade do homem; e, precisamente porque humana, deve ser eticamente estruturada e institucionalizada.
O grande desafio que temos diante de nós — resultante das problemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira — é mostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade.
71. Esta possibilidade da mentalidade técnica se desviar do seu originário álveo humanista ressalta, hoje, nos fenómenos da tecnicização do desenvolvimento e da paz. Frequentemente o desenvolvimento dos povos é considerado um problema de engenharia financeira, de abertura dos mercados, de redução das tarifas aduaneiras, de investimentos produtivos, de reformas institucionais; em suma, um problema apenas técnico. Todos estes âmbitos são muito importantes, mas não podemos deixar de interrogar-nos por que motivo, até agora, as opções de tipo técnico tenham resultado apenas de modo relativo. A razão há-de ser procurada mais profundamente. O desenvolvimento não será jamais garantido completamente por forças de certo modo automáticas e impessoais, sejam elas as do mercado ou as da política internacional. O desenvolvimento é impossível sem homens rectos, sem operadores económicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum. São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral. Quando prevalece a absolutização da técnica, verifica-se uma confusão entre fins e meios: como único critério de acção, o empresário considerará o máximo lucro da produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado das suas descobertas. Deste modo sucede frequentemente que, sob a rede das relações económicas, financeiras ou políticas, persistem incompreensões, contrariedades e injustiças; os fluxos dos conhecimentos técnicos multiplicam-se, mas em benefício dos seus proprietários, enquanto a situação real das populações que vivem sob tais influxos, e quase sempre na sua ignorância, permanece imutável e sem efectivas possibilidades de emancipação.
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