sexta-feira, 11 de março de 2011

Zumbis


Ótimo artigo do Marcio Garcia, da PUC-Rio, sobre a reinvenção da roda pelos gestores da política monetária da nova administração.



A inovação cênica mais impressionante do desfile das escolas de samba no Rio foi a comissão de frente da Unidos da Tijuca, com seus mortos-vivos cujas cabeças despencavam bruscamente. Também na economia, ideias que pareciam enterradas voltam a empolgar alguns economistas. Para o bem de nossa economia, cabe reenviar tais zumbis econômicos de volta às sepulturas. Vamos a eles.

Tornou-se frequente o argumento de que, no governo Dilma Rousseff, o Banco Central (BC) teria passado a fazer uso de um conjunto mais diversificado de instrumentos, ditos macroprudenciais, para combater a inflação. Disso decorreria necessidade de menor elevação dos juros. Na realidade, tais instrumentos têm sido largamente usados na economia brasileira, há décadas, para conter a expansão do crédito. O principal deles, os recolhimentos compulsórios ao BC, atinge, no Brasil, provavelmente os níveis mais elevados no mundo há muitos anos. Prova disso é que o combate à crise pôde contar com a liberação de cerca de R$ 100 bilhões de compulsórios dos bancos, que muito ajudaram a restituir a liquidez. Os aumentos dos compulsórios em 2010, aliados a outras medidas que restringiram o crescimento do crédito, não constituem novidade entre nós. Após o Plano Real, quando a demanda agregada crescia perigosamente, o BC impôs grande aumento de compulsórios, instituindo até um inusitado compulsório sobre empréstimos bancários.

Temos, sim, larga experiência no uso de tais medidas administrativas no controle inflacionário. O problema é que, não obstante o auxílio que a liberação dos compulsórios possa ter prestado ao combate à crise em 2008, não é claro que o uso dos compulsórios para controle do crédito e da inflação seja uma experiência exitosa no Brasil (ou em outros países). A verdade é que os compulsórios foram aqui elevados em momentos em que a demanda agregada explodia e não se queria deixar todo o trabalho aos juros. Passada a explosão da demanda, a redução dos compulsórios foi sempre muito gradual, permanecendo seus níveis anormalmente elevados quando comparados a padrões mundiais.

Embora muito menos citados do que juros altos, compulsórios elevados, constituem, ao lado daqueles, a base da política monetária extremamente apertada necessária para manter a inflação sob controle desde o Plano Real, simplesmente porque a política fiscal tem sido tradicionalmente muito frouxa. Os bons macroeconomistas brasileiros estão roucos de afirmar a necessidade de mudar o mix de políticas macroeconômicas para se ter uma política fiscal menos expansionista e uma política monetária mais frouxa. Entretanto, nosso sistema político parece incapaz de gerar coalizões que consigam conter de forma duradoura a expansão de gastos públicos.

Também tem sido propalada a ideia de que, a partir da mudança no comando do BC, teria passado a haver melhor coordenação entre as políticas fiscal e monetária. Essa é uma avaliação pouco razoável, uma vez que a mudança se deu no comando do BC, que não responde pela política fiscal, a origem do problema. Como se sabe, manteve-se o mesmo ministro da Fazenda, que levou adiante a equivocada e eleitoreira expansão fiscal em 2010. Por que, então, a pretensa coordenação de agora deveria conduzir a uma melhor política fiscal?

As últimas medidas fiscais mostram que a essência de tal expansionismo não mudou. Em que pese a boa iniciativa do corte de despesas públicas deste ano, que precisa ainda ser complementada por um plano plurianual de controle do crescimento de gastos, o governo continua a expandir a demanda agregada com sucessivos e altamente onerosos aportes a bancos públicos, ao BNDES, sobretudo. Assim, é difícil que o uso de pretensos novos instrumentos de política monetária, ou o ilusório aprimoramento da coordenação BC/Fazenda, venha a permitir a redução permanente dos juros reais na economia brasileira sem colocar em risco o cumprimento da meta para a inflação.

Outro zumbi que afronta a economia é a presunção de que a convergência da inflação para a meta possa ser feita sem afetar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). A menos de imprevisíveis choques favoráveis, como a improvável queda dos preços de commodities, a redução da inflação acarretará, sim, custos de PIB e de desemprego. Se o desenho da política macroeconômica (monetária, fiscal e cambial) procurar elidir tais custos, é muito provável que a inflação não venha a convergir para a meta tão cedo.

Nunca é demais repetir. É fundamental que os condutores de nossa política econômica tenham claro que a volta da inflação à meta (4,5%) em 2012, dados o equivocado expansionismo fiscal de 2010 e os choques de custos que vêm do exterior, requererá, sim, que o PIB cresça aquém de seu crescimento potencial. Isso significa que o crescimento deste ano não poderá chegar a 4% e que serão necessárias decisões duras, como cortar despesas do governo na carne e interromper de vez os repasses aos bancos públicos.

Em suma, é ilusório achar que passamos agora a dispor de novo instrumental de política econômica que nos permitiria obter, sem custos, os benefícios de baixa inflação com crescimento. Tal discurso tem um risco muito conhecido, o da alta inflação. O Brasil ainda não completou a maioridade quanto ao controle inflacionário, duramente conquistado apenas em 1994. A reação dos agentes econômicos brasileiros à alta da inflação tende a ser muito maior do que a que se observa nos países que não viveram a hiperinflação. A ata do Copom, divulgada ontem, volta, apropriadamente, a mencionar a inércia inflacionária, e a advertir, indiretamente, contra a indexação de salários, como a regra adotada para a correção do salário mínimo ("um risco importante reside na possibilidade de concessão de aumentos nominais de salários incompatíveis com o crescimento da produtividade"). Não convém brincar, é melhor deixar o zumbi da inflação bem enterrado.

Fonte: Valor