terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Chico Lopes e o Pibinho


Ótimo artigo de um dos nossos melhores economistas: o velho chico lopes...



O Produto Interno Bruto (PIB) é uma medida do volume de bens e serviços produzidos na economia em determinado período. No Brasil os serviços constituem cerca de 60% do PIB e os serviços de intermediação financeira constituem cerca de 10% dos serviços, ou seja, 6% do PIB.

Ao longo dos últimos quatro trimestres, o PIB a preços correntes (isto é, incluindo um componente de inflação) aumentou 4,93%, enquanto o PIB dos serviços a preços correntes aumentou 7,1%. Como o deflator implícito do PIB total, que é uma medida de inflação derivada do cálculo das contas nacionais, aumentou 4,03%, o aumento em termos reais foi de 0,87% para o PIB total. Já para o PIB dos serviços, o aumento em termos reais foi de 1,36%, o que significa que o deflator implícito para esse setor aumentou 5,7%. Ou seja, houve mais inflação nos serviços do que no PIB, o que faz todo sentido tendo em vista o aumento de 14% no salário mínimo.

O que não faz sentido, porém, é que, em virtude da redução da taxa Selic ao longo dos últimos quatro trimestres, a contribuição do setor financeiro ao PIB em termos reais tenha sido negativa, igual a menos 1,02%. Nesse mesmo período, segundo o IBGE, a contribuição a preços correntes dos serviços financeiros caiu 4,95%.

Como entender isso? Como é possível que a redução das taxas de juros na economia tenha produzido uma redução do volume de serviços financeiros à disposição da população? Como é possível explicar que a queda da Selic tenha tornado o país mais pobre?

Não há dúvida de que o IBGE procura sempre utilizar a melhor metodologia internacional para construir os números do PIB. No caso dos serviços financeiros usa os novos critérios sugeridos em 1993 pelo Sistema de Contas Nacionais da ONU. A ideia é medir de forma indireta o PIB gerado por uma grande parcela da produção de serviços financeiros em que não ocorre a cobrança direta de tarifas, ao contrário do que acontece, por exemplo, no caso do aluguel de cofres bancários. Para aquela maior parte dos serviços financeiros, a metodologia simplesmente multiplica o spread bancário, isto é, a diferença entre as taxas de juros nas pontas de empréstimo e captação, pelo volume total de crédito. Este conceito é denominado nos textos de língua inglesa de FISIM, isto é, "financial intermediation services indirectly measured".

No Brasil, o IBGE adota o mesmo conceito sob o nome SIFIM, apenas adicionando uma pequena "jabuticaba" quando inclui o spread auferido pelos bancos comerciais na captação de depósitos que são majoritariamente aplicados em títulos do governo rendendo a taxa Selic. É como se os bancos prestassem um serviço à sociedade que é remunerado por esse "spread de captação". Essa "jabuticaba" reflete uma característica especial da realidade brasileira, mas na realidade não significa problema maior para a metodologia.

O problema maior parece estar na aplicação automática, sem grande cuidado e reflexão mais profunda, da metodologia à realidade brasileira atual. O que temos aqui é uma economia que passa por importante processo de remonetização e de expansão do crédito como percentual do PIB, ao mesmo tempo em que ocorre uma queda importante nas taxas de juros e nos spreads bancários.

O problema está na definição do valor real do SIFIM, o que mesmo na literatura estrangeira é considerado problema não trivial. Veja por exemplo o que escreve Andrew Haldane, diretor executivo para estabilidade financeira do Banco da Inglaterra, no texto "The contribution of the financial sector: miracle or mirage?": "Estimar uma medida real do SIFIM é uma atividade repleta de dificuldades tanto conceituais como computacionais... Métodos para medir o valor dos SIFIM a preços constantes são [tipicamente] baseados em convenções. No Reino Unido, o valor real do SIFIM é calculado pela aplicação dos spreads de juros do ano-base sobre um indicador adequado do volume de empréstimos e depósitos. Esse último é estimado deflacionando os estoques correspondentes de empréstimos e depósitos usando o deflator do PIB. Este método implica em que qualquer volatilidade no valor dos SIFIM a preços correntes, causada por alterações dos spreads de juros, não irá contaminar a medida do valor real".

O IBGE, na sua nota metodológica nº 13, anuncia uma solução equivalente: "O índice de volume do valor de produção do SIFIM foi obtido implicitamente a partir da razão entre a soma do valor de alguns ativos (empréstimos) e passivos (depósitos) a preços constantes no ano /trimestre em questão e a preços correntes no ano anterior. A soma do valor a preços constantes dos ativos e passivos foi calculada através da deflação do valor corrente pelo deflator do Produto Interno Bruto (PIB)".

Ou seja, a metodologia do IBGE segue o padrão internacional. Consiste em tomar a soma dos valores nominais de empréstimos e depósitos e deflacioná-los pelo deflator implícito do PIB. Com base nesse agregado pode-se calcular a medida da variação do SIFIM em termos reais pela simples variação desse agregado. Dessa forma consegue-se eliminar da medida do valor real do SIFIM qualquer elemento de volatilidade nos spreads de juros, como sugerido por Haldane.

Vejamos o que isso implica no caso brasileiro atual. Nos últimos quatro trimestres, o agregado representado pela soma do valor total dos empréstimos do sistema financeiro mais o M4 aumentou 17,57%. Nesse mesmo período, o deflator implícito do PIB aumentou 4,03%. Logo, a variação real do SIFIM deveria ser de 13,02%, algo muito diferente do 1,02% negativo apurado pelo IBGE.

Podemos examinar conceitos alternativos. Por exemplo, se somarmos o valor total apenas dos empréstimos do sistema financeiro privado ao valor do M2 (que adiciona ao M1 os depósitos de poupança e títulos privados), mas excluindo papel moeda em poder do público, chegamos a uma variação de 9,5%. Alternativamente, se somarmos o valor total dos empréstimos do sistema financeiro privado ao valor do M3 (que adiciona ao M2 quotas de fundos de renda fixa e operações compromissadas), novamente excluindo papel moeda, chegamos a uma variação de 16,3%.

O IBGE apurou uma variação nominal do valor dos SIFIM de menos 4,95%, que parece razoável levando-se em conta a redução dos spreads bancários. O que parece menos claro é como chegou à variação negativa de 1,02% para o valor real do SIFIM.

É instrutivo perguntar como seria possível compatibilizar uma variação nominal de menos 4,95% com, por exemplo, uma variação real de mais 13,02%. A resposta, obviamente, é que o deflator implícito correto para o SIFIM não é o deflator implícito do PIB, particularmente quando os spreads bancários estão mudando de forma significativa. No presente caso, a variação do deflator implícito dos SIFIM teria sido de menos 15,90% (calculado dividindo um menos 4,95 sobre 100 por um mais 13,02 sobre 100).

Essa conclusão faz todo sentido. Se o spread bancário está caindo fortemente, o valor nominal do SIFIM pode ter variação negativa, o que indica que uma renda nominal menor está sendo apropriada pelo setor financeiro. Ao mesmo tempo, porém, ocorre uma forte expansão da intermediação financeira, o que significa um aumento da "produção" real de serviços financeiros, medido através da elevação do volume de empréstimos e depósitos.

De certo modo, o que está acontecendo aqui é o inverso do que está acontecendo com a produção de serviços pessoais, para os quais o deflator implícito está associado ao salário mínimo. Nesse caso, o aumento do salário mínimo acima da inflação implica em que a variação do deflator implícito adequado para o setor é superior à variação do deflator implícito do PIB total. No caso dos SIFIM, a queda dos spreads bancários implica em que a variação do deflator implícito adequado para o setor é muito inferior à variação do deflator implícito do PIB total.

É uma distinção complexa e bastante sutil, mas da maior relevância prática. Se o IBGE estivesse medindo a variação real do PIB do setor financeiro em mais 13,02%, ao invés de menos 1,02%, e considerando que esse setor corresponde a aproximadamente 6% do PIB, a variação calculada para a variação percentual do PIB total nos últimos quatro trimestres mudaria dos 0,87% divulgados para 1,72%. Se fosse utilizada a variação dos empréstimos privados mais M2, que foi de 9,5% nos últimos quatro meses, a variação percentual do PIB total mudaria para 1,19%.

Essas discrepâncias podem ser consideradas pequenas, mas no momento atual, com toda essa conversa sobre o "pibinho" e a aparente dificuldade para retomar o crescimento, devem ser mais bem entendidas. Podem estar sugerindo que os economistas que projetam uma reativação já em andamento não estão afinal tão enganados e que quaisquer medidas adicionais de estímulo para reaquecer a economia são agora absolutamente desnecessárias.

Francisco Lafaiete Lopes é Ph.D.em Economia pela Universidade de Harvard e ex-presidente do Banco Central