segunda-feira, 3 de junho de 2013

Entrevista com o Fernando Cardim de Carvalho


Cardim é reconhecidamente o maior especialista em Keynes no Brasil e um dos melhores economistas da escola post-keynesiana. Infelizmente participa pouco do debate sobre a política econômica brasileira. Não, eu não sou post-keynesiano: apenas aprecio trabalhos de qualidade em economia, independente da linha teorica do autor. E isto, convenhamos, é artigo escasso na mídia brasileira.


Valor: Apesar da série de estímulos fiscais e monetários já concedidos, o crescimento continua a decepcionar, enquanto as projeções para inflação se aproximam de 6%. O que trava a expansão do PIB?

Cardim: Isso é o que muitos vêm se perguntando há algum tempo. Com certeza há alguma coisa errada com um quadro em que uma expansão medíocre se combina com uma inflação persistente, e com uma evolução externa preocupante, especialmente neste ano com a deterioração da balança comercial. A política econômica é prisioneira de dilemas importantes, dentre os quais o mais dramático parece mesmo ser o comportamento da taxa de câmbio, em que a valorização ameaça a atividade econômica, especialmente da indústria, mas a desvalorização ameaça dar força ao crescimento de preços, além do sinal de perigo que representa ainda para muita gente. Sair disso não será conseguido de uma hora para outra, exigirá uma reflexão mais profunda sobre a natureza dos problemas correntes da economia do que parece estar sendo feita até agora.

Valor: Quais são esses problemas?

Cardim: Deve-se notar que esses dilemas não são de hoje, ainda que seu impacto hoje possa ser de alguma forma diverso do que ocorreu no passado recente. A sua raiz está em uma fonte de vulnerabilidade comum a planos de combate à inflação ancorados na taxa de câmbio, como foi o caso do Plano Real. A ameaça de importações baratas é sempre um instrumento fortíssimo de pressão sobre os produtores domésticos que tenham a intenção de aumentar seus preços. A eficácia desse instrumento não foi uma descoberta brasileira, esse gênero de estratégia foi implementado com sucesso no combate à inflação elevada também em outros países, com resultados semelhantes, ainda que talvez não tão dramáticos quanto no nosso caso. O problema desses planos é como sair deles, como voltar à normalidade, voltar a gerir a taxa de juros, a taxa de câmbio, a política fiscal como um país normal. O Brasil não descobriu ainda como fazer isso. Nós ainda temos indexação demais, e não só no salário mínimo. A impressão que se tem é que o governo compensa a dificuldade de formular uma estratégia mais ampla com o impulso à micro-gerência, à tomada de decisões pontuais, que não necessariamente criam as condições necessárias para que o investimento possa voltar a crescer de forma mais sustentada e com ele a economia como um todo.

Valor: O país corre o risco de se ver em um cenário de estagflação?

Cardim: Eu acho que esse risco ainda é pequeno. Haver, sempre há, especialmente em economias com experiências inflacionárias como a nossa, em que os agentes econômicos tendem a se manter mais alertas para o comportamento de preços do que racionalmente deveriam. Mas teria de haver uma completa perda de controle sobre o processo econômico. A aceleração da inflação neste primeiro semestre já foi suficiente, por exemplo, para levar o BC a agir de forma mais conservadora. O crescimento que se espera para 2013 é baixo, e o resultado do PIB trimestral não autoriza arroubos de otimismo, mas parece pior em comparação com a retórica insensatamente triunfalista que às vezes o governo parece empregar do que em comparação, por exemplo, com o resto do mundo. A situação não é tão ruim quanto pode parecer quando se forma expectativas baseadas em um discurso inadequadamente eufórico de algumas autoridades.

Valor: Dados os desequilíbrios visíveis hoje na economia, alguns analistas têm argumentado que uma desvalorização cambial e um ajuste contracionista, com aumento de juros e consolidação fiscal, são inevitáveis. O senhor concorda?

Cardim: Há uma questão que precisaria ser esclarecida antes de se tomar qualquer decisão mais definitiva sobre essa matéria. Alguns críticos da política econômica do governo Rousseff sugerem que uma política expansionista não é anticíclica, mas pró-cíclica, porque a economia já estaria numa situação próxima à do pleno emprego e a expansão da demanda agregada, nessas circunstâncias, não levaria ao crescimento, mas à inflação. Descontando o calor e os adjetivos que abundam no debate, de todos os lados, seria importante investigar melhor a questão. As estatísticas nesse ponto são historicamente deficientes, talvez haja mesmo uma pressão excessiva sobre o mercado de trabalho, como os aumentos salariais acima dos ganhos de produtividade e as iniciativas do governo para importar mão de obra sugerem. Se isso for verdade, políticas de crescimento, de estímulo ao investimento e à acumulação de capital, seriam muito mais eficazes do que o estímulo ao consumo, e, o que é perigoso, ao endividamento. Um mix diferente de políticas macroeconômicas, como foi defendido por economistas heterodoxos como [o inglês] Richard Kahn, ou na fronteira entre ortodoxia e heterodoxia, como James Tobin [economista americano, Prêmio Nobel em 1981], de política mais acomodativa de taxas de juros e mais controladora de gastos públicos, poderia estimular investimentos ao invés de consumo, colocando a economia numa trajetória de maior crescimento, ao mesmo tempo que permita a adoção de uma política cambial mais adequada às nossas circunstâncias. Políticas industriais melhor focadas em setores estrategicamente mais promissores seriam bem-vindas. Não quero sugerir que exista um receituário simples, mas a experiência dos últimos vinte anos, desde que a primeira fase do Plano Real foi iniciada, deveria nos ensinar o que não funcionou da ortodoxia dos primeiros anos e das políticas de crescimento que foram tentadas depois.

Valor: Com a percepção de que a recuperação da economia americana está se consolidando, o dólar está se valorizando em relação a uma cesta de moedas, inclusive o real. O real mais desvalorizado poderia ajudar a impulsionar a indústria? Neste caso, seria uma opção conviver com inflação mais alta?

Cardim: O Brasil não é um país "normal" no que tange à inflação. Nossa longa experiência com a alta inflação nos leva sempre a reagir de forma que a outros parece exagerada a pressões inflacionárias. Para que políticas cambiais adequadas sejam implementadas não há como escapar de considerar que inflação mais alta do que os tetos fixados certamente alimentará atitudes defensivas, como a busca de "reposição" de perdas inflacionárias, em si mesmas deletérias. Mas me parece óbvio que é preciso mudar a política cambial antes que voltemos a nos especializar na produção de matérias primas e serviços, como defendido por alguns. Para isso, é necessário atacar duas frentes em simultâneo: reduzir custos domésticos de produção, como o financeiro e o tributário, de modo a mudar o que for possível da taxa real de câmbio; e alterar o mix de política econômica, substituindo juros mais elevados por políticas fiscais mais disciplinadas e focalizadas principalmente na criação da infraestrutura necessária, material e institucional, para a expansão do investimento e da acumulação de capital.

Fonte: Valor