terça-feira, 11 de outubro de 2011
As oscilações de autonomia do Banco Central
Ainda não comprei, mas depoís de ler a resenha já coloquei na lista de leituras. O tema me interessa e é interessante conhecer a leitura de um cientista político, que aparentemente, não é marxista.
Para a opinião pública em geral ficou a versão de que os militares derrubaram o presidente João Goulart (1961-1964) em 31 de março de 1964 porque ele se deixara dominar pelos comunistas e porque a inflação corria solta, beirando os 100% ao ano. Mas o livro "Banco Central do Brasil - O Leviatã Ibérico - Uma Interpretação do Brasil Contemporâneo", do cientista político Eduardo Raposo, professor da PUC-Rio, mostra que em sua segunda fase, pós-restauração do presidencialismo (janeiro 1963), o governo Goulart fez um esforço ortodoxo para estabilizar a moeda, pelas mãos de Celso Furtado, ministro do Planejamento,.
Furtado chamou para executar a tarefa, no âmbito do seu Plano Trienal, o economista Casimiro Ribeiro, colaborador muito próximo de Roberto Campos, um dos símbolos do pensamento monetarista no Brasil, que viria a ser ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, o primeiro do regime militar.
"A parte de que participei foi, evidentemente, a relativa ao combate à inflação e ao problema de compatibilização do combate à inflação com o crescimento econômico, o desenvolvimento. Para certa surpresa minha, os argumentos que apresentei foram quase todos aceitos pelo Celso Furtado", disse Ribeiro em seu depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, utilizado no livro de Raposo.
"Celso Furtado era um desenvolvimentista, um economista bem-sucedido da escola da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina). Mas ele sabia que ali havia aspectos monetaristas importantes. Isso mostra uma certa grandeza dele", analisa Raposo.
A tese econômica do livro, cujo roteiro é o processo de criação e de funcionamento do Banco Central (BC) desde o governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) até o segundo governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), é a de que a autoridade monetária teve, ao longo da história, tanto menos autonomia quanto maior foi o esforço desenvolvimentista do governo e menor a estabilidade da equipe econômica.
A pesquisa e análise sobre o BC, desde quando Dutra criou seu embrião, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), serve como base para o desenvolvimento da tese central do trabalho de Raposo, que é demonstrar a existência de um hibridismo na sociedade brasileira, caracterizado por um Estado dividido entre a modernidade e o atraso, com o aprisionamento a interesses corporativos dos grupos no poder. Esse hibridismo teria sua raiz histórica na origem ibérica da sociedade ocidental cristã brasileira.
Para o autor, ao contrário dos principais países europeus, como Inglaterra, França e Alemanha, cujas formações emergiram de contratos sociais que transferiram o poder dos indivíduos para o Estado, os países ibéricos, especialmente Portugal, forjaram o Estado na luta para a expulsão dos mouros da região sob o comando de um líder hegemônico - no caso português, Afonso Henriques.
O Estado português foi constituído, então, de cima para baixo, e não pela transferência de poder dos indivíduos - daí o ibérico associado ao Leviatã do título. Leviatã vem em referência à metáfora do filósofo inglês Thomas Hobbes em seu livro do mesmo nome, em que o monstro bíblico é o Estado poderoso, capaz de dar limites à liberdade do homem.
Raposo conta a história da Sumoc e do BC, este criado no governo Castelo Branco, sob os auspícios de Octavio Gouvêa de Bulhões (ministro da Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento). Vê-se o vaivém da liberdade de ação da autoridade monetária, numa narrativa em que o autor se vale de depoimentos e entrevistas de personagens como o próprio Bulhões, Ribeiro, Dênio Nogueira (primeiro presidente do BC), Ernane Galvêas (presidente do BC no governo Emilio Médici e ministro da Fazenda no governo João Figueiredo), Francisco Gros (presidente do BC nos governos José Sarney e Fernando Collor de Mello), Ibrahim Eris (também presidente do BC no governo Collor) e Gustavo Franco (presidente do BC no primeiro governo FHC).
"Minha tentativa foi de tirar um pouco o Banco Central da caixa preta, porque ele é muito explicado por economistas e o jargão ali é muito forte. Como não sou economista, tentei entender o BC através dessa hipótese macrocivilizatória do nosso hibridismo", explica Raposo.
O livro cumpre efetivamente o propósito de poupar o leitor do economês e ajudá-lo a entender um tema bastante atual. Desde que decidiu, no mês passado, reduzir em um ponto percentual a taxa básica de juros (Selic), logo após a presidente Dilma Rousseff ter defendido essa redução e contra a expectativa da maioria do mercado, o grau de independência do BC entrou em debate.
Raposo mostra que, além da dicotomia entre desenvolvimentismo e estabilização, a autonomia da Sumoc e do BC esteve, ao longo da história, também relacionada com a composição e, sobretudo, o tamanho do Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão que traça em última instância as diretrizes seguidas pelo BC. No governo Sarney, chegou a ter 27 membros.
A redução para três membros (ministros da Fazenda e do Planejamento e o presidente do BC) no governo Itamar Franco, mantida até hoje, é vista pelo autor como uma das razões para a relativa autonomia que o BC vem mantendo deste então. "Se o hibridismo é uma gangorra, acho que a sociedade pode estar ganhando espaço" [sobre os interesses corporativos].
Não ficou de fora outro ponto do debate atual: a liberdade do BC em relação ao mercado, tanto quanto em relação ao governo. Na epígrafe do capítulo 3, Raposo destaca uma frase de Alan Blinder, vice-presidente do Federal Reserve (o BC americano) entre 1994 e 1996 (governo Bill Clinton): "Banco centrais modernos devem afirmar sua independência em relação aos mercados financeiros tão vigorosamente quanto afirmam sua independência em relação à política".
"Banco Central do Brasil - O Leviatã Ibérico - Uma Interpretação do Brasil Contemporâneo"
Eduardo Raposo. Hucitec. 292 págs., R$ 48,00
Fonte: Valor