sexta-feira, 25 de julho de 2014

Diplomacia e poder


Spektor é uma raridade no deserto intelectual  que ainda é a área de pesquisas de International Political Economy no Brasil. Seu livro e artigos são leitura obrigatoria aos interessados no tema.


Neto de ucranianos e italianos, nascido na Argentina e criado no Brasil, onde ganhou seu leve sotaque na Bahia e os primeiros títulos acadêmicos em Brasília, Matias Spektor, doutorado em Oxford, com passagens em Washington e Londres, é a globalização em pessoa. Dias atrás, por celular, Twitter, Facebook, por e-mail e em chamadas nos serviços gratuitos de telefonia e mensagens Viber e Skype, conectou-se com autoridades e amigos brasileiros e indianos para acompanhar, de Londres, a reunião, no Ceará, do grupo dos Brics, que reúne Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul. Gostou do que ouviu. "Foi um passo importante na institucionalização que o grupo não tinha", disse ao Valor, citando a criação do banco dos Brics e do novo arranjo de reservas para socorro em caso de risco nas contas externas. Uma das vozes mais originais e independentes surgidas no debate de política externa ultimamente, o historiador e especialista em relações internacionais diz que os Brics "aumentam capacidade de alavancagem da diplomacia brasileira, dão acesso a um mundo que, de outra forma, o país não teria."

Mas Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul são diferentes entre si. Seus interesses e recursos de poder diversos os impedem de, algum dia, constituir uma espécie de G-7, o clube das potências ocidentais, que, apesar de divergências pontuais, compartilha valores culturais, econômicos e políticos. A reunião com grandes líderes regionais dos Brics é importante por dar maior autonomia de decisão ao Brasil nas grandes discussões mundiais, analisa Spektor. E por aproximar o país da maior economia do grupo, a China.

"Os Brics abrem oportunidade de investimentos, de negócios comerciais e, acima de tudo, dão algo de que a gente precisa muito: acesso ao governo chinês", diz, lembrando a crescente dependência da economia brasileira em relação à China. "Se o Brasil tem problemas para construir canais com os EUA, que dirá com a China." Sobre a construção de canais de entendimento com os EUA, Spektor não precisa falar; deve ser lido. Ele acaba de lançar o livro "18 Dias - Quando Lula e FHC se Uniram para Conquistar o Apoio de Bush" (Objetiva, 288 págs., R$ 36,90) é muito mais do que o título promete.

Sem dúvida, vale a pena, no cenário polarizado da política brasileira, conhecer em detalhes a história de como o governo tucano, já no fim, deu apoio aos petistas para afastar em Washington e em Wall Street a imagem de incendiário colada ao recém-eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Além de espírito público, tratava-se de evitar colapso financeiro que afundaria a economia brasileira e, com ela, o legado de estabilização econômica pelo qual o presidente Fernando Henrique Cardoso esperava marcar sua passagem pelo Planalto. A partir de sólida pesquisa acadêmica em documentos de arquivos oficiais e privados no Brasil e nos EUA, Spektor traz revelações que explicam opções de política externa nos governos FHC e Lula como resultado da tradição da diplomacia brasileira somada a visões diferentes sobre o espaço reservado ao Brasil na cena internacional.



O livro de Spektor seleciona momentos-chave no período que vai desde o anúncio da vitória de Lula nas eleições de 2002 ao encontro dele, ainda não empossado, com o presidente George W. Bush, em dezembro daquele ano. Cobre um período bem mais longo que esse, porém, e lembra como o governo FHC rejeitou proposta de Bush para integrar o G-7 e adotou uma política de "resistência defensiva" em relação aos EUA, que chegou a irritar Washington.

Spektor conta, ainda, como o americano rechaçou proposta de acordo comercial entre EUA e Mercosul e relata o esforço do então embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, para atrair o interesse do candidato tucano José Serra pelas relações Brasil-EUA, até que o diplomata recebeu instruções de Brasília para ajudar Lula a entender-se com a Casa Branca. Apesar de visto com desconfiança até no governo de Bill Clinton, com quem construiu um forte relacionamento pessoal e "uma falsa ilusão de sintonia diplomática", Fernando Henrique era tido como o presidente de maior experiência na região sul-americana, e tinha credibilidade, que usou, no governo Bush, para avalizar as promessas de gestão responsável feitas por Lula à comunidade internacional.

Spektor não se prende ao eixo Brasília-Washington, e traz novas informações, muitas delas baseadas nos arquivos da FGV, do Rio, e da diplomacia americana. Mostram como o governo tucano apoiou a consolidação de Hugo Chávez no poder na Venezuela, e como operou para evitar golpe de Estado no Paraguai. Traz, ainda, uma memória da rejeição do governo Fernando Henrique aos esforços no continente contra a ditadura de Alberto Fujimori no Peru.

Para explicar a guarida de FHC a Alberto Fujimori, Spektor recorre à justificativa de um diplomata anônimo, segundo o qual o governo brasileiro optou por evitar, no Peru, envolvimento numa crise sobre a qual não teria total controle, ao contrário da crise paraguaia (esta última descrita em detalhes saborosos, como o conselho do então ministro do Exército de FHC a seu ex-aluno e general golpista paraguaio Lino Oviedo: "Lino, não faz isso").

"18 Dias" é também um remédio para as análises maniqueístas e superficiais que costumam aparecer em manifestações sobre política externa no Brasil. São pontos altos no livro os personagens apresentados por Spektor, em papéis diferentes daqueles em que geralmente são vistos na cena política, como José Dirceu, que, aliado a Antônio Palocci, foi um dos principais defensores e gestores da relação com os EUA, em contraposição a um talvez excessivamente cauteloso e desconfiado Itamaraty.

No livro, lê-se como, ao defender os interesses nacionais - contra negociadores europeus e americanos - na questão dos medicamentos genéricos, José Serra encantou-se (e chegou a cogitar chamá-lo em um eventual ministério) pelo diplomata Celso Amorim, quando ainda não personificava a diplomacia de Lula. Acompanha-se também o notável esforço do então embaixador do Brasil nos EUA, Rubens Barbosa, para elevar o perfil do Brasil na capital americana, o que também lhe gerou enormes atritos na defesa dos interesses brasileiros em temas como comércio e propriedade intelectual.

"Estivemos perto de construir uma parceria estratégica", disse Lula, em entrevista para o livro, falando da "relação muito boa" com Bush. Spektor defende esforço semelhante de busca de afinidades e cooperação com os EUA, assim que definido o cenário político com as eleições presidenciais deste ano. Como explicita "18 Dias", diplomacia não é feita para câmeras de TV nem microfones de palanque, embora exija satisfação à opinião pública e possa usar os holofotes para atingir seus resultados. A partidarização excessiva do debate público da política externa também cria preconceitos que livros como o de Spektor ajudam a desmontar.


Fonte: Valor