O debate sobre a ciência econômica e a crise econômica continua,..., desta vez com um artigo bem equilibrado do Braido. O fato é que apesar de tudo a econômia ainda é a ciência social melhor preparada para analisar a realidade econômica e social. Naturalmente há limites, mas não são únicos, ou especificos a economia.
No último domingo, a Folha dedicou grande parte do caderno Mais! a uma abrangente reportagem intitulada "Crise da Razão Econômica". Nessa ocasião, tive a honra de contribuir com um pequeno artigo descrevendo a estrutura que considero adequada a um curso moderno em economia.
Resumidamente, defendi uma ampliação no número de docentes e discentes envolvidos em pesquisas científicas de nível internacional, quesito em que as instituições de ensino superior brasileiras ainda deixam muito a desejar. Em minha vida profissional, tenho tido evidências de como a integração entre pesquisa e ensino é capaz de formar economistas críticos e versáteis.
Meu argumento, no entanto, destoava de algumas visões expressas naquele caderno por intelectuais discordantes do método adotado em economia.
Críticas similares -que associam práticas da profissão à recente crise global- têm sido recentemente veiculadas na mídia. Dessa forma, seguindo a tradição democrática e plural desse jornal, fui convidado a ocupar este espaço com uma visão alternativa sobre o tema.
Gostaria de iniciar minha argumentação com uma alegação bastante forte. Em minha opinião, a utilização da atual crise financeira como pretexto para atacar a metodologia dominante na ciência econômica constitui uma impostura intelectual.
Isso equivale a atacar os métodos utilizados pelas ciências médicas e biológicas por causa da ocorrência de epidemias não previstas, como no caso recente do surto de gripe causada pelo vírus da influenza A (H1N1).
O método científico, dominante em economia assim como nas ciências ditas maduras, foi responsável por um enorme avanço do conhecimento. Tal saber tem agora se mostrado imensamente útil para a resolução de diversos problemas de nossa civilização, incluindo a própria crise.
Globalização
Nas últimas duas décadas, a humanidade vivenciou um crescimento da produção e da produtividade sem precedentes. Centenas de milhões de indivíduos saíram do estado de pobreza por conta de avanços ocorridos na China, na Índia e em outros países emergentes.
Isso não teria sido possível sem a globalização do comércio e a integração financeira mundial, frutos de inovações nas áreas de transportes, telecomunicações e finanças.
A ciência econômica também contribuiu com o entendimento das virtudes e defeitos da focalização nos programas de transferência de renda e combate à pobreza. Outros milhões de indivíduos desfavorecidos beneficiaram-se dessa agenda.
Por fim, em outra contribuição digna de nota, a profissão dedica-se há anos a entender a importância da educação sobre o desenvolvimento econômico e social. O debate não se limita a quantificar os efeitos econômicos de aumentos na escolaridade, mas se dedica, acima de tudo, a elaborar mecanismos de incentivo a professores e diretores de escolas a partir da avaliação periódica do desempenho de alunos. O impacto desse tipo de pesquisa sobre as gerações futuras é imenso.
Não há, portanto, espaço para discussões ultrapassadas e oportunistas quanto aos métodos e paradigmas da ciência econômica. Há, sim, espaço para um redirecionamento de tópicos de pesquisa, visando ampliar o entendimento atual sobre vários temas de interesse, tais como: os fundamentos econômicos das bolhas financeiras; a importância de falências e inadimplências nos modelos de finanças; os ganhos e perdas associados à regulação financeira; os mecanismos de criação e destruição endógena de liquidez.
Tudo isso será conduzido naturalmente, sob a liderança das principais sociedades e associações especializadas e sem uma revisão drástica no método empregado.
Em referência à recente crise global, penso ser crucial responsabilizar uma geração de economistas em posições de comando que se omitiu diante de evidências gritantes de desalinhamento de incentivos entre executivos e acionistas em diversas corporações capitalistas. Esse problema estava evidente para muitos desde o início do século.
Problemas conhecidos
Em 2001, por exemplo, a companhia de energia Enron pediu concordata após a acusação de que seus principais executivos tivessem cometido fraudes financeiras e contábeis com a possível leniência de bancos e outras corporações, dentre as quais uma das mais importantes empresas de auditoria da época, a Arthur Andersen.
Os acontecimentos que precederam a recente crise financeira guardam enorme semelhança com esse caso. Ainda que não seja possível caracterizar a existência de fraude, os riscos assumidos por algumas instituições financeiras foram levianos e isso nunca repercutiu nas avaliações elaboradas pelas principais agências de classificação de riscos.
Esse excesso de exposição a riscos só ocorreu devido a uma estrutura de remuneração de executivos que premia agressivamente a obtenção de lucros de curto e médio prazos sem ser capaz de punir com a mesma intensidade eventuais perdas futuras.
Esse tema é amplamente conhecido pelos economistas sob o nome técnico de "risco moral". Constitui tópico obrigatório no curso de graduação em economia.
Há ainda uma enorme área de pesquisa, denominada governança corporativa, que busca entender o desenho administrativo ideal de uma corporação. Essa literatura apoia-se na análise teórica de modelos de assimetria de informação e risco moral bem como na análise empírica das diferentes estruturas gerenciais.
Lamentavelmente, os responsáveis pelas instituições de regulação do sistema financeiro internacional negligenciaram a importância do problema. Acreditou-se que os acionistas fossem capazes de disciplinar as escolhas de seus executivos, ignorando-se um problema comum a estruturas acionárias pulverizadas: a falta de interesse dos acionistas minoritários em se envolverem na administração do empreendimento. Esse tema, denominado o "problema do carona" (em inglês, "free rider"), é também obrigatório nos cursos de graduação.
Regulação
Compartilho da visão de que esse erro derivou-se do pensamento liberal, que enaltece as virtudes de limitar a capacidade de coerção do Estado sobre seus cidadãos. Sob essa filosofia, não haveria motivos para impedir que homens livres (tais quais acionistas e executivos) estabelecessem acordos entre si sem a interferência governamental.
Porém é preciso reconhecer que foi essa liberdade extrema que permitiu que o setor financeiro inventasse inúmeros serviços e produtos, que ampliaram os instrumentos de divisão de riscos e expandiram a capacidade de financiamento para a construção de casas, usinas hidrelétricas e plataformas de petróleo, entre outros projetos produtivos cujo sucesso é incerto.
Discute-se hoje um aumento do nível de regulação do sistema financeiro internacional.
Faço votos para que isso não chegue ao extremo de inibir inovações capazes de, por exemplo, viabilizar a alocação de recursos em países carentes de investimentos de alto risco, como é o caso de diversas economias na Ásia, no Leste Europeu, na América Latina e na África.
Por fim, não poderia deixar de exaltar o conhecimento econômico desenvolvido, principalmente, na segunda metade do último século. Foi graças a esse extraordinário avanço que governos de todos os países foram capazes de reagir de forma rápida e coordenada.
Felizmente, não se perdeu tempo debatendo qual paradigma econômico seria adotado. O governo chinês não tinha uma teoria econômica específica para aquele país, nem o governo brasileiro decidiu promover um amplo e demorado debate nacional sobre as medidas de combate à crise.
Os principais líderes mundiais abraçaram o conhecimento econômico estabelecido e buscaram nele uma solução cooperativa para o problema.
Mérito de economistas que conseguiram, em curto espaço de tempo, digerir visões distintas e encontrar propostas capazes de alcançar bons resultados práticos. Mérito também de políticos, advogados e funcionários públicos espalhados ao redor do globo que implementaram tais propostas em tempo recorde, sem desrespeitar a ordem jurídica vigente.
Em vez de uma década de estagnação, como ocorreu após a crise de 1929, tivemos um ano duro, mas que parece ter deixado para trás as previsões mais catastróficas.
As políticas adotadas reduziram substancialmente o impacto dessa crise sobre a esfera produtiva, demonstrando o apogeu da razão econômica diante das demais ciências sociais, as quais se limitaram a tecer críticas preconceituosas e desinformadas sem conseguir formular um plano de ação alternativo.
LUIS HENRIQUE BERTOLINO BRAIDO é diretor de ensino da Escola de Economia da FGV-RJ.
Fonte: FSP