terça-feira, 3 de agosto de 2010

Delfim e o Estado


De vem em quando Delfim Neto acerta. É o caso do artigo publicado hoje no Valor.



É grave ilusão acreditar que a crise produzida pelas arriscadas inovações do sistema financeiro, que atingiram o nível destrutivo que conhecemos, exige a volta a um "novo" e ampliado papel do Estado na aceleração do processo de desenvolvimento econômico. Por que exatamente o fracasso da mão visível dos Estados no controle do setor financeiro exigiria o retorno ao Estado-Produtor? Este tem falhado invariável e miseravelmente ao longo da história na construção de uma sociedade politicamente livre e economicamente eficiente.

Se há alguma coisa que aprendemos no estudo da economia política nos últimos 250 anos é que o desenvolvimento social e econômico com liberdade individual exige, isto sim, um Estado bem controlado constitucionalmente e suficientemente forte para impor a construção de instituições que controlem e regulem o setor privado. São elas que, ao estimularem adequadamente a liberdade de iniciativa, produzem a organização dos mercados, fundamental para a eficiência econômica. A fórmula do sucesso não é única, mas todas exigem um Estado-Indutor inteligente e amigável com relação a um robusto setor privado. É preciso reconhecer, entretanto, que: 1) existem bens públicos que o mercado não pode prover com eficiência; 2) o nível de atividade e do emprego tendem, naturalmente, a flutuar pelo comportamento psicológico dos agentes em resposta às suas expectativas sobre o futuro imperscrutável; 3) não há "lei natural" que leve ao máximo de bem estar da sociedade ou a uma aceitável distribuição de renda; e 4) a economia pode funcionar durante muito tempo abaixo do seu potencial produtivo. Tentar corrigir esses problemas é função do Estado, com uma política econômica bem desenhada que dê os incentivos corretos aos agentes.

Não se trata de problema ideológico envolvido em sinal de trânsito (direita ou esquerda), mas de um pragmatismo responsável que tenta aprender com a história. Em certas circunstâncias, como foi o caso do Brasil nos anos 1930/80, a falta de musculatura do setor privado exigiu uma ação direta de empresas estatais nos setores críticos da economia (energia, transporte, portos etc), inclusive com a criação de "poupança forçada" (empréstimos que foram devolvidos, como é o caso das debêntures da Eletrobras).

Por maiores e bem fundadas que tenham sido algumas das críticas às apressadas privatizações - de fato estimuladas pelas crises do balanço em conta corrente, como consequência de uma política cambial desastrosa - é inegável o extraordinário aumento da eficiência das empresas privatizadas e de sua subsequente contribuição para a aceleração do desenvolvimento social e econômico do Brasil.

É evidente, por outro lado, que a criação e expansão das empresas estatais é uma questão de poder. Cada uma delas precisa procurar mais espaço - tão naturalmente como qualquer manifestação da vida, não importa aonde esta surja. Todas têm a necessidade (ínsita no seu DNA) de crescer e multiplicar-se.

Isso não tem nada a ver com a competência dos administradores públicos. Muitas de nossas velhas estatais (a Telebrás, por exemplo) ganharam prêmios internacionais. Posteriormente elas forneceram mão de obra qualificada, competente e honesta para as empresas que as adquiriram. O problema com as empresas estatais é o mesmo com as do setor privado: ou crescem ou entram em estagnação. A diferença é que elas não morrem e não vão à falência. Ficam esquecidas nas dobras displicentes dos orçamentos "frouxos" que se repetem ano após ano. O Estado é um fenômeno geológico: os estratos nunca são substituídos. São apenas esquecidos e soterrados, mas continuam no orçamento.

A União deve ter hoje mais de cem empresas estatais. Se somarmos com as dos Estados e municípios, não teremos menos do que 400, muitas caminhando célere e seguramente para a tragédia, como é o caso de fundos de pensão municipais. É hora de estudar cuidadosamente a necessidade de cada uma delas e dar eficiência às que, em função do seu próprio objetivo, têm de continuar públicas e dispor das demais, privatizando-as ou extinguindo-as.

Se continuarmos a criar uma estatal para cada problema que o governo tem que resolver, em breve voltaremos à confusão de 1979, quando foi preciso fazer um "censo" para saber quantas estatais existiam e quantas outras cada uma delas havia independentemente parido...

Vou fazer uma confissão. O meu amigo e ministro da Aeronáutica, o ilustre brigadeiro Araripe Macedo, sugeriu ao presidente Médici criar a Infraero (Lei 5.862, de 12 de dezembro de 1972). Houve muita resistência interna (o governo pensava em um modesto programa de privatizações), mas argumento do hábil brigadeiro convenceu-nos a todos: com no máximo 600 funcionários ela resolveria os problemas que já enfrentávamos nos aeroportos. Pois bem, depois de 37 anos, ela tem hoje uma força de trabalho da ordem de 28 mil profissionais (empregados, concursados e terceirizados) e o problema dos aeroportos ficou para ser resolvido em 2014!

Proponho um contra-factual. O que teríamos hoje em matéria de eficiência e conforto no transporte aéreo, se em lugar de criar a Infraero tivéssemos privatizado os aeroportos em 1972?