Ótimo artigo do Martin Wolf sobre a Irlanda e a Zona do Euro.
As rachaduras na plataforma da união monetária são reveladoras. A promessa era que a zona do euro protegeria seus membros de crises cambiais. Mas eu, assim como outros, alertei: sejam cautelosos com o que vocês desejam - crises de crédito substituiriam crises cambiais e essas provavelmente se agravariam ainda mais.
Porque uma união monetária provocaria crises de crédito? Uma resposta é que as discrepâncias nos custos relativos provocam desequilíbrios comerciais estruturais - vastos déficits externos quando as economias menos competitivas estão próximas da produção potencial. Os setores privado ou público então devem gastar mais do que as suas rendas para sustentar o pleno emprego. Esse gasto excessivo deve, por sua vez, ser financiado a partir do exterior. No fim essa concessão de empréstimo desaparecerá. Se a concessão de empréstimo for via setor bancário, como na Irlanda ou na Espanha, primeiro haverá uma crise financeira. Se ocorrer por intermédio do setor público, como na Grécia, a crise acontecerá primeiro nas finanças do Estado.
Uma resposta mais profunda é que a taxa de juros comum parecerá muito baixa em alguns países-membros. Na zona do euro, esse efeito foi exacerbado pelo fato de as taxas de juros globais estarem baixas e a demanda nas economias principais estarem fracas. Essas taxas de juros ultrabaixas provocaram bolhas de preços de ativos e expansões de crédito nas economias periféricas. Essas, por sua vez, estimularam forte crescimento no setor de construção. Nessas circunstâncias, o que o falecido John Kenneth Galbraith chamava de "bezzle" (a duração da fraude, quando reina uma sensação de riqueza) - o repertório de crimes financeiros - aumenta, para despontar na quebra. À medida que o sistema financeiro implode, a economia desmorona e as finanças públicas, aparentemente sólidas na expansão econômica, mudam radicalmente para pior.
O resultado é uma enorme crise de crédito. Num regime de câmbio flutuante, parte da pressão seria aliviada por uma taxa de câmbio em alta na expansão e numa taxa em queda na retração econômica. Com uma taxa ancorada, o colapso da moeda normalmente restabeleceria a competitividade e o crescimento, como aconteceu com os países asiáticos mais duramente atingidos no fim da década de 90. Numa união monetária, essas válvulas de segurança se perdem. Em vez disso, temos uma crise conjunta de crédito e de competitividade. A solução para a perda de competitividade é uma queda acentuada nos preços. Mas isso piora a crise de crédito: isso, então, é deflação de dívida, como a Irlanda conhece.
Esse é um aspecto em que a crise cambial é menos ruim que uma crise de dívida. Mas um calote soberano também abala a confiança no Estado, que é o alicerce da ordem política e jurídica. Uma crise do setor bancário é quase tão prejudicial. Uma crise cambial, por si só, simplesmente não é.
Esse é o contexto em que a crise da zona do euro deve ser entendida. Nos velhos dias do Sistema Monetário Europeu, poderiam ter ocorrido crises cambiais nos países periféricos, em consequência das quais as moedas grega, irlandesa, portuguesa, espanhola, italiana e, possivelmente, outras moedas, teriam desabado ante o velho marco alemão. Isso já aconteceu com a libra esterlina. Se a Irlanda ainda estivesse na região da libra esterlina, o punt teria caído junto com ela.
Em vez disso, a zona do euro precisa lidar com as suas crises de crédito. Ela não está se saindo bem. Apesar de improvisos heroicos, os indicadores de risco sobre a dívida soberana dos países menos confiáveis atingiu níveis elevados. Os mercados ignoraram os riscos na expansão e se voltaram barbaramente contra os créditos mais fracos na retração.
A dinâmica subjacente é, mais uma vez, similar ás das crises cambiais. Nessa, os governos se sentem obrigados a oferecer taxas de juros altas a ponto de minar, em vez de aumentar, a sua credibilidade. Nas crises de crédito, os mercados mais uma vez impõem taxas insuportáveis. Um país confiável desfruta taxas de juros baixas que reforçam a confiança. Um país que carece de tal credibilidade enfrenta taxas de juros que minam a confiança. As expectativas são auto-realizáveis. Isso é o que está despontando agora no crédito da zona periférica do euro: países com baixas taxas de crescimento com enormes déficits fiscais não podem prometer aperto monetário suficiente, dadas as altas taxas de juros, para reforçar a sua credibilidade. A austeridade poderá fracassar em proporcionar a credibilidade que promete.
O Estado irlandês deveria ter salvado a si mesmo através da drástica reestruturação dos passivos dos bancos. Dívida bancária simplesmente não pode ser dívida pública. Se a dívida bancária se tornar esse tipo de dívida, os banqueiros devem ser considerados funcionários públicos e os bancos, departamentos do governo. Certamente, os credores devem ser atingidos pelo golpe, em vez disso.
Isso deixa os soberanos. O que precisamos aqui, como os líderes da zona do euro reconhecem, é uma combinação de provisão de recursos generosa com reestruturação: a primeira se destina a reverter o pânico autorrealizável; a última, para reconhecer as realidades da insolvência. Administrar essa combinação pode ser uma tarefa muito espinhosa.
Além disso, a condição de membro da união monetária transformou a posição financeira dos membros, que estão privados de um banco central moderado e de flexibilidade cambial. Consequentemente, é muito mais provável que sejam levados ao calote cabal em relação ao que costumavam, como os mercados constatam. As únicas opções de saída seriam que o Banco Central Europeu comprasse a dívida pública, ou uma união fiscal, com a capacidade de resgatar membros em dificuldade. Ambas são inconcebíveis. A Alemanha certamente seria a primeira a sair.
Portanto, a grande questão agora é se a zona do euro pode evitar uma onda de crise fiscal junto com uma crise financeira. A questão é se a união sobreviverá. O artigo dessa semana, de José-Ignacio Torreblanca do Conselho Europeu de Relações Estrangeiras em Madrid, com suas queixas sobre atitudes alemãs, indica que a resposta pode ser: não.
Esse é um tema de natureza mais política do que econômica. É possível que uma união monetária sobreviva a calotes soberanos. A pergunta é, em vez disso, se os membros acreditam que o esquema continua sendo benéfico. A dificuldade para os países superavitários é que eles devem financiar os países deficitários, aceitar ajustes externos ou empurrar a zona do euro a um superávit externo. A dificuldade para os países deficitários é que o custo de deixar a zona do euro é enfrentar crises de dívida. Se elas já tiverem ocorrido, os custos parecerão menores. Se eles pensam que substituíram crises cambiais por crises de crédito, que nem mesmo restabelecem a competitividade e o crescimento, eles poderão considerar a união como um mau negócio. A cola política poderá derreter. Essas calamidades realmente acontecem. Agora depende dos países-membros assegurar que não aconteçam.
Fonte: Valor