quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sachs e a luta de classes

Divertido, mas realista, artigo do Sachs, no Valor de hoje, sobre o ambiente político americano relacionado a política econômica. Imagino a reação do marxismo talebã ao título do artigo( luta de classes politica nos EUA)....



Os Estados Unidos estão em rota de colisão com os Estados Unidos. O acordo deste mês entre o presidente Barack Obama e os republicanos no Congresso para estender os cortes de impostos iniciados há dez anos pelo ex-presidente George W. Bush vem sendo saudado como o início de um novo consenso bipartidário. Em vez disso, acho que se trata de uma falsa trégua do que será uma batalha campal pela alma da política dos EUA.
Como em muitos países, os conflitos sobre moralidade pública e estratégia nacional resumem-se a questões de dinheiro. Nos EUA, isso é mais verdadeiro do que nunca. Os EUA exibem um déficit orçamentário anual em torno a US$ 1 trilhão, que pode aumentar ainda mais como resultado do novo acordo tributário. Esse nível de captação é alto demais para que fiquemos tranquilos. Precisa ser cortado, mas como?

O problema é a política americana corrompida e a perda de moralidade cívica. Um partido político, o Republicano, defende pouco além de cortes nos impostos, que colocam acima de qualquer outro objetivo. Os democratas têm um conjunto de interesses um pouco mais amplo, como o apoio à educação, assistência médica, treinamento e infraestrutura. Assim como os republicanos, no entanto, os democratas também se mostram dispostos a promover uma enxurrada de cortes nos impostos dos principais contribuintes de suas campanhas, predominantemente os americanos ricos.

O resultado é um paradoxo perigoso. O déficit orçamentário dos EUA é imenso e insustentável. Os mais pobres são espremidos por cortes em programas sociais e um mercado de trabalho enfraquecido. Um em cada oito americanos depende de vales de alimentação para comer. Ainda assim, apesar dessas circunstâncias, um dos partidos quer dizimar a arrecadação tributária e o outro é facilmente arrastado, contra seus melhores instintos, preocupado em manter satisfeitos seus contribuintes mais ricos.

Esse frenesi por cortes de impostos chega, incrivelmente, após três décadas de regras fiscais elitistas nos EUA, que favoreceram os ricos e poderosos. Desde que Ronald Reagan tornou-se presidente em 1981, o sistema orçamentário dos EUA vem sendo orientado a apoiar o acúmulo de vastas riquezas no topo da distribuição de renda. Surpreendentemente, a parcela de 1% mais rica das famílias americanas agora possui patrimônio líquido maior que a de 90% da parte de baixo. A renda anual das 12 mil famílias mais ricas é maior do que a das 24 milhões mais pobres.

Ironicamente, há uma área em que certamente grandes cortes no orçamento seriam justificados: a militar. Mas essa é justamente a área que os republicanos não tocariam. Querem diminuir o orçamento não com o fim da guerra inútil no Afeganistão e a eliminação de sistemas desnecessários de armamentos, mas cortando a educação, saúde e outros benefícios para os mais pobres e as classes trabalhadoras.

Espremidos contra a parede, minha previsão é de que os americanos mais pobres e a classe trabalhadora começarão a agitar-se por justiça social.

Isso pode levar tempo. O nível de corrupção política nos EUA é estarrecedor. Tudo agora se trata de dinheiro para levar adiante campanhas eleitorais, que se tornaram incrivelmente dispendiosas. O custo das eleições de meio de mandato é estimado em US$ 4,5 bilhões, com a maior parte das contribuições vindo de grandes empresas e pessoas físicas ricas. Essas forças poderosas, muitas das quais podem operar anonimamente sob a lei dos EUA, trabalham incansavelmente para defender os que estão no topo da distribuição de renda. Mas não se enganem: os dois partidos estão implicados. Já se fala inclusive que Obama levantará US$ 1 bilhão ou mais para sua campanha de reeleição. Tal quantia não virá dos mais pobres.

O problema para os ricos é que, tirando os gastos militares, não há espaço para cortes no orçamento, a não ser em áreas de apoio básico para os mais pobres e a classe trabalhadora. Será que os EUA realmente reduzirão a renda dos aposentados e os benefícios de assistência médica? Realmente equilibrarão o orçamento por meio da redução dos gastos na educação, quando o desempenho dos estudantes americanos já é superado pelos colegas asiáticos? Os EUA realmente deixarão sua infraestrutura pública continuar se deteriorando? Os mais ricos tentarão empurrar essa agenda, mas acabarão fracassando.

Obama chegou ao poder com a promessa de mudança. Até agora não houve nenhuma. Seu governo está repleto de banqueiros de Wall Street. Suas principais autoridades saem para juntar-se aos bancos, como recentemente foi o caso de Peter Orszag, diretor de Orçamento. Ele está sempre pronto para servir os interesses dos ricos e poderosos.

Se a situação continuar, surgirá um terceiro partido, comprometido em limpar a política dos EUA e recuperar algo de decência e justiça. Isso, também, levará tempo. O sistema político é profundamente orientado contra qualquer desafio aos dois partidos estabelecidos. Ainda assim, o momento de mudanças chegará. Os republicanos acreditam estar com a vantagem e que podem perverter o sistema ainda mais a favor dos ricos. Acredito que se demonstrará que estão errados.

Jeffrey D. Sachs é professor de economia e diretor do Instituto Terra, da Columbia University. É também assessor especial do secretário-geral das Nações Unidas no tema das Metas de Desenvolvimento do Milênio.

Fonte Valor