terça-feira, 15 de abril de 2008

Clodovis Boff e o Documento de Aparecida

O texto abaixo é relativamente antigo, mas é importante por apresentar a visão de um dos mais importantes teologos da atualidade sobre o documento aprovado no V Celam. A avaliação dele é diferente daquela que ouvi em perdizes. Mas isto é esperado:perdizes parou no tempo.


"'O Documento de Aparecida é o ponto mais alto do Magistério da Igreja Latino-Americana'.
Entrevista especial com Clodovis Boff

Em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à revista IHU On-Line, o frei Clodovis Boff afirmou que o documento conclusivo da V Conferência do Celam “é uma surpresa do Espírito, pois nada deixava prever um texto dessa qualidade. É também um milagre da Mãe Aparecida, a quem o Santo Padre tinha confiado a direção da Assembléia”. E, muito otimista, continua: “O documento da V Celam não só dá mais um passo em frente, mas abre uma ‘nova fase’ na missão da Igreja no Continente. A sensação que passa é que ‘agora vai’”.

Frei Clodovis Boff, frade da ordem dos Servos de Maria, nasceu em Concórdia, Santa Catarina, em 1944. É professor no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, Rio de Janeiro, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Pontifícia Faculdade “Marianum” de Roma. É também membro do ISER-Assessoria. Possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Mogi das Cruzes, graduação em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina e doutorado em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina.

É autor de vários livros, entre os quais citamos Uma Igreja para o Novo Milênio (5. ed. São Paulo: Paulus, 2003). Ele concedeu uma entrevista à IHU On-Line número 125, de 29 de novembro de 2004, que foi posteriormente republicada no Cadernos IHU em Formação número 8, de 2006, intitulado Teologia Pública.

IHU On-Line – O que o documento síntese da V Conferência do Celam traz de novidade em relação às conferências anteriores?
Clodovis Boff - O Documento de Aparecida é, a nosso ver, o ponto mais alto do Magistério da Igreja latino-americana e caribenha. É o melhor documento produzido até hoje pelos nossos bispos e talvez por qualquer outro episcopado regional. Ele recapitula o que há de melhor nas Celams anteriores, e isso dentro de um quadro teológico muito mais rico, seguro e homogêneo. O documento é uma surpresa do Espírito, pois nada deixava prever um texto dessa qualidade. É também um milagre da Mãe Aparecida, a quem o Santo Padre tinha confiado a direção da Assembléia. A meu ver, o documento da V Celam não só dá mais um passo em frente, mas abre uma “nova fase” na missão da Igreja no Continente. A sensação que passa é que “agora vai”. É que o documento apresenta uma estrutura teológica e pastoral harmônica bem centrada. Acertando o passo com lógica específica da vida da fé, o documento se estrutura articulando os seguintes elementos: fé viva em Cristo a partir de uma experiência de encontro (“discípulos”), fé essa que se irradia no mundo em forma da missão (“apóstolos”) e que se prolonga na sociedade em termos de compromisso pela justiça e pela vida (“para que n’Ele nossos povos tenham vida”). Aqui, cada coisa está no seu lugar: a fé em Cristo no começo, como fundamento de tudo; a evangelização como primeiro desdobramento espontâneo dela; e, enfim, a missão social como seu necessário desdobramento ulterior.

Este é o “fio vermelho” que permeia todo o documento e lhe dá unidade. Está aí, a meu ver, a chave geral que abre as riquezas de todo o texto episcopal. A principal novidade do documento? É a própria boa-nova do Amor de Deus a ser experimentado, anunciado e projetado na vida. Essa é a “prioridade das prioridades”, a prioridade originária e permanente, que a Igreja é chamada a anunciar e a re-anunciar sem descanso. A partir dessa novidade perene, o documento coloca as outras novidades.

IHU On-Line - Sinteticamente, quais seriam as três grandes luzes do Documento de Aparecida e as três grandes sombras?
Clodovis Boff - O grande acerto do Documento de Aparecida é ter recolocado, no início e na base de tudo, a fé viva em Cristo. “Começou pelo começo”, isto é, por onde começou historicamente a vida da Igreja e por onde recomeça a cada dia. Fazendo assim, os bispos encontraram a embocadura certa para relançar a missão evangelizadora do Continente: partir em tudo e sempre de Cristo. Sabe-se – e Aristóteles o declara – que achar o princípio é sempre a coisa mais difícil e também a mais decisiva, mas uma vez achada, tudo se torna fácil e se põe em ordem. O documento apresenta a fé como um evento existencial, como uma “experiência de encontro”. Trata-se de um encontro vivo com a pessoa viva de Jesus Cristo. Entender a fé assim constitui uma redescoberta decisiva da V Assembléia, pois supera uma idéia de fé entendida como simples aceitação de doutrinas, ou como opção ética, ou ainda como mera tradição cultural, como é em grande parte o nosso catolicismo. Fazendo assim, o episcopado latino-americano se põe em cheio no campo da espiritualidade, a parte mais íntima e vital da fé.

Um catolicismo de “iniciados”

Para operacionalizar pastoralmente a idéia de uma fé como “encontro com Cristo”, fonte de tudo o mais, os bispos propõem o “itinerário” de uma primeira “iniciação à vida cristã” (cap. VI). Entendem por aí introduzir “mistagogicamente” os afastados da fé à escuta da Palavra, à oração pessoal e à eucaristia. Pois só um catolicismo de “iniciados” é realmente evangelizador, socialmente fecundo e eficazmente resistente ao secularismo moderno assim como aos proselitismos atuais. Quanto às sombras, vamos com calma e respeito, pois se trata aqui de um documento de nossos pais e guias na fé. Mas, francamente, não percebemos sombras que mereçam reparo. O que talvez possa acontecer seria a tentativa de jogar sombras sobre o documento por parte dos grupos que pretendem levar a Igreja por caminhos pouco sintonizados com o sopro do Espírito.

IHU On-Line - Qual é a importância de difundir na cultura de nossos povos a fé em Deus-amor, e como isso se aplica no dia-a-dia da Igreja?
Clodovis Boff - A mensagem de Deus-amor é a coisa mais preciosa que a Igreja tem a oferecer ao mundo. É disso que ela vive e é para isso que ela existe. Esta é a essência mesma do Evangelho. Isso vale para todos e mais ainda para os nossos povos pobres. Estes, excluídos que são pelos poderosos, precisam sentir-se acolhidos pelo Criador e Pai, de modo a criarem coragem para viver e lutar por tão grande dignidade. Quanto à “aplicação” da mensagem do amor de Deus, deve-se dizer que, mais do que se aplicar, ela precisa ser vivida a plenos pulmões e em todo o tempo. É como uma luz que enche de beleza, energia e calor cada realidade da vida, desde o eros até à vida na pólis. A evangelização objetiva despertar antes de tudo essa paixão mística e esse deslumbramento espiritual. Se a fé é bastante intensa, ela mesma encontra suas formas concretas de se manifestar. Pois, como disse Nietzsche , “quem tem um porquê sempre encontra um como”. Quanto à operacionalização pastoral do anúncio do Evangelho do Amor, os bispos propuseram concretamente uma “grande missão continental” (n. 376-8). Esta objetiva mobilizar todas as forças vivas da Igreja para “sair ao encontro” dos distantes. E isso não com intenções de proselitismo ou de reconquista, mas para partilhar a alegria do Evangelho e comunicar as maravilhas da vida em e com Cristo.

IHU On-Line - A Assembléia de Aparecida confirmou a “opção preferencial pelos pobres”. Como essa opção vai ser posta em prática?
Clodovis Boff - Em Aparecida, a opção pelos pobres ganhou uma nova amplitude. Foram identificados “novos rostos” da pobreza: os desempregados, os refugiados e migrantes, os aidéticos e os tóxico-dependentes, a população de rua, as mulheres vítimas da violência e exploração sexual, os presos e tantos outros rostos mais. Mas é, sobretudo, a qualidade desta opção que é mais sublinhada pelo documento. Trata-se de uma opção verdadeiramente evangélica, no sentido de vir banhada e mesmo encharcada da fé em Cristo. E isso, tanto em sua origem (ela nasce do encontro com o Filho de Deus, “que de rico se fez pobre”) quanto em seu exercício (ela vibra com os sentimentos do coração do Bom Pastor). Quanto às aplicações concretas, além das indicações práticas que dão, os bispos apelam para a “imaginação da caridade”, a que se referiu João Paulo II.

IHU On-Line - Qual é a importância do tópico “família” e da necessidade de “promover a cultura do amor no matrimônio e na família, assim como o respeito pela vida”.
Clodovis Boff - A Igreja sempre viu na família uma instância privilegiada da transmissão da fé como também dos valores humanos, inclusive sociais. Em verdade, entre todas as agências de transmissão de valores, a família é a primeira e mais importante pela influência capilar, profunda e a longo termo que exerce sobre os filhos. Não é, pois, verdade que ela é mais vítima da problemática social do que agente de mudanças. Esta é uma visão falsa e derrotista. Como “célula da sociedade”, uma família sadia leva a uma sociedade sadia. Mas se essa célula é cancerosa, toda a sociedade pode entrar em metástase. A vocação específica da família é particularmente urgida no contexto atual de relativismo e de niilismo, no sentido de resistir a e mesmo de reverter o atual processo de desagregação dos valores, inclusive os mais naturais, como o amor à vida, a família heterossexual e a solidariedade humana.

IHU On-Line - Que rosto de Igreja emerge da V Conferência? Quais seriam suas principais características? Clodovis Boff - Será o tipo de Igreja que cumprir o lema da Conferência, devidamente desenvolvido no Documento de Aparecida. Portanto, será em primeiro lugar, uma Igreja “discipular”: ouvinte da Palavra, meditadora, grande orante, contemplativa, adoradora, doxológica e eucarística. Depois, será uma Igreja “missionária”, que anuncia com alegria e entusiasmo a Boa-nova do amor de Deus em Cristo, como o que enche de sentido o coração do ser humano, também nesta vida. Será, enfim, uma Igreja “agápica”, enquanto se faz samaritana de todos os caídos à beira das estradas do mundo, cuidando deles e curando-os "