quarta-feira, 11 de junho de 2008

Populorum Progressio

Esquecida por setores da intelectualidade católica ainda fascinados pelo canto de sereia de uma certa ilha caribenha , ignorada em Perdizes, a doutrina social da Igreja ainda se mostra atual. Este é o caso, por ex., da “ Populorum Progressio”, Carta Encíclica do Papa Paulo VI sobre o desenvolvimeno dos povos, de 26 de março de 1967.

A atualidade do diagnóstico, assim como das medidas propostas é uma indicação da qualidade do documento, mas, também, infelizmente, do muito que ainda deve ser realizado para resolver os problemas discutidos no texto: a fome, o desequilíbrio nas trocas comerciais, um liberalismo sem face humana, entre outros.

Recomendo fortemente a leitura desta Encíclia e transcrevo abaixo algumas passagens:

“2. EQÜIDADE NAS RELAÇÕES COMERCIAIS
56. Ainda que fossem consideráveis, seriam ilusórios os esforços feitos para ajudar, no plano financeiro e técnico, os países em via de desenvolvimento, se os resultados fossem parcialmente anulados pelo jogo das relações comerciais entre países ricos e países pobres. A confiança destes últimos ficaria abalada, se tivessem a impressão de que uma das mãos lhes tira o que a outra lhe dá.
Distorção crescente
5'7. As nações altamente industrializadas exportam sobretudo produtos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produtos agrícolas e matérias primas. Aqueles, graças ao progresso técnico, aumentam rapidamente de valor e encontram um mercado satisfatório. Pelo contrário, os produtos primários provenientes dos países em via de desenvolvimento sofrem grandes e repentinas variações de preços, muito aquém da subida progressiva dos outros. Daqui surgem grandes dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando contam com as exportações para equilibrar a sua economia e realizar o seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos.
Para além do liberalismo
58. Quer dizer que a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais. As suas vantagens são evidentes quando os países se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico: constitui estímulo ao progresso e recompensa do esforço. Por isso os países industrialmente desenvolvidos vêem nela uma lei de justiça. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os preços "livremente" estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas. Devemos reconhecer que está em causa o princípio fundamental do liberalismo, como regra de transações comerciais.
Justiça dos contratos ao nível dos povos
59. Continua a valer o ensinamento de Leão XIII, na encíclica Rerum novarum: em condições demasiado diferentes, o consentimento das partes não basta para garantir a justiça do contrato, e a regra do livre consentimento permanece subordinada às exigências do direito natural. (57) O que era verdade do justo salário individual, também o é dos contratos internacionais: uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a lei única da livre concorrência, que freqüentes vezes leva à ditadura econômica. A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social.
Medidas a tomar
60. Foi o que já compreenderam os próprios países desenvolvidos, que se esforçam por estabelecer no interior da sua economia, por meios apropriados, um equilíbrio que a concorrência, entregue a si mesma, tende a comprometer. Assim, muitas vezes sustentam a sua agricultura à custa de sacrifícios impostos aos setores econômicos mais favorecidos. E também, para manterem as relações comerciais que se estabelecem entre países e países, particularmente em regime de mercado comum, adotam políticas financeiras, fiscais e sociais, que se esforçam por restituir às indústrias concorrentes, desigualmente prósperas, possibilidades semelhantes.
Convenções internacionais
61. Mas não se podem usar nisto dois pesos e duas medidas. O que vale para a economia nacional, o que se admite entre países desenvolvidos, vale também para as relações comerciais entre países ricos e países pobres. Sem o abolir, é preciso, ao contrário, manter o mercado de concorrência dentro dos limites que o tornam justo e moral e, portanto, humano. No comércio entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, as situações são demasiado discordantes e as liberdades reais demasiado desproporcionadas. A justiça social exige do comércio internacional, para ser humano e moral, que restabeleça, entre as duas partes, pelo menos certa igualdade de possibilidades. É um objetivo a atingir a longo prazo. Mas, para o alcançar, é preciso, desde já, criar uma igualdade real nas discussões e negociações. Também neste campo se sente a utilidade de convenções internacionais num âmbito suficientemente vasto: estabeleceriam normas gerais, capazes de regular certos preços, garantir certas produções e sustentar certas indústrias nascentes. Não há quem duvide de que tal esforço comum, no sentido de maior justiça nas relações comerciais entre os povos, traria aos países em via de desenvolvimento um auxílio positivo, cujos efeitos seriam não só imediatos, mas também duradouros.
Obstáculos a vencer: nacionalismo
62. Existem ainda outros obstáculos à formação de um mundo mais justo e mais estruturado numa solidariedade universal: queremos falar do nacionalismo e do racismo. Comunidades recentemente elevadas à independência política, é natural que se mostrem ciosas de uma unidade nacional ainda frágil, e se esforcem por protegê-la. É também normal que nações de cultura antiga se sintam orgulhosas do patrimônio que lhes legou a história. Mas estes sentimentos legítimos devem ser sublimados pela caridade universal, que engloba todos os membros da família humana. O nacionalismo isola os povos, contrariando o seu verdadeiro bem. E seria particularmente nocivo onde a fraqueza das economias nacionais exige, pelo contrário, um pôr em comum esforços, conhecimentos e meios financeiros, para se realizarem os programas de desenvolvimento e aumentarem os intercâmbios comerciais e culturais.
Racismo
63. O racismo não é apanágio exclusivo das nações jovens, onde ele se dissimula por vezes sob aparências de rivalidades de clãs e de partidos políticos, com notável detrimento da justiça e perigo da paz civil. Durante a era colonial o racismo grassou, com freqüência, entre colonos e indígenas, impedindo o recíproco e fecundo entendimento e provocando, ressentimentos após injustiças reais. E continua ainda a ser obstáculo à colaboração entre nações desfavorecidas, e fermento de divisão e ódio, mesmo dentro dos próprios Estados quando, contrariamente aos direitos imprescritíveis da pessoa humana, indivíduos e famílias se vêem injustamente submetidos a um regime de exceção por motivo de raça ou de cor.
Para um mundo solidário
64. Aflige-nos profundamente tal situação, tão carregada de ameaças para o futuro. No entanto, não perdemos a esperança: sobre as incompreensões e os egoísmos, acabarão por prevalecer uma necessidade mais viva de colaboração e um sentido mais agudo de solidariedade. Esperamos que os países, cujo desenvolvimento é menos avançado, saibam aproveitar-se dos seus vizinhos para organizar uns com os outros, em áreas territoriais mais extensas, zonas de desenvolvimento combinado, estabelecendo programas comuns, coordenando os investimentos, repartindo as possibilidades de produção e organizando os intercâmbios. Esperamos também que as organizações multilaterais e internacionais encontrem, por meio da necessária reorganização, os caminhos que permitam aos povos ainda em via de desenvolvimento, sair das situações difíceis, em que parecem estar embaraçados, e descobrir, na fidelidade ao seu caráter próprio, os meios do progresso social e humano.
Povos artífices do seu destino
65. A isto temos de chegar: a que a solidariedade mundial, cada vez mais eficiente, permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino. Demasiadas vezes o passado esteve marcado por relações de força entre as nações: virá um dia em que as relações internacionais hão de possuir o cunho de respeito mútuo e de amizade, de interdependência na colaboração e de promoção comum sob a responsabilidade de cada indivíduo. Os povos mais novos ou mais fracos reclamam a sua parte ativa na construção de um mundo melhor, mais respeitador dos direitos e da vocação de cada um. É reclamação legítima: a todos compete ouvi-la e satisfazê-la.”
Fonte:http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum_po.html